Especial: A importância de Marc du Pontavice na animação francesa: Parte 2

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Na primeira parte sobre Marc du Pontavice, destacamos seu início de vida, desde sua paixão pelo cinema, os abusos sofridos na infância, seu tempo em um internato na Alemanha até o momento em que decidiu se tornar produtor. Agora, na segunda parte, exploraremos o início de sua carreira na Gaumont, seu relacionamento familiar e sua passagem pela franquia Highlander, conforme relatado em sua autobiografia “Destin animé” (Destino Animado), lançada em 2022 pela editora Slatkine & Cie.

Após se formar na Sciences Po, Marc iniciou sua carreira como gerente jurídico e financeiro na Compagnie Française Cinématographique (CFC), uma produtora histórica que havia sido transmitida de pai para filho por gerações até cair nas mãos de um industrial que morreu misteriosamente.

Cyril de Rouvre, pouco interessado nas atividades tradicionais de seu grupo, Robur, desejava fazer filmes. Com o crescimento da TV, ele começou a adquirir catálogos de filmes, incluindo o de Robert Dorfmann, formando o que se tornaria o maior acervo da indústria cinematográfica francesa, o Studiocanal. No entanto, seu principal objetivo era produzir. Ambicioso e encantador, porém pouco previdente, Cyril partiu para conquistar o Festival de Cannes, sabendo que precisava de credenciais. Para isso, recrutou dois jovens executivos essenciais para seu projeto.

Didier Duverger trouxe conhecimentos sobre financiamento cinematográfico, especialmente através da Coficiné, onde permaneceu por mais de trinta anos, tornando-se o principal centro de financiamento da indústria. Ele se tornou o fiel banqueiro de Cyril ao longo de sua carreira.

Christian Charret, por sua vez, havia liderado o Centro Nacional do Cinema (CNC) e conhecia profundamente o setor. Diplomático, ocupou cargos importantes no serviço público e em gabinetes ministeriais durante o governo de François Mitterrand. Embora de origem modesta, Christian ascendeu pela meritocracia e tornou-se um amante da cultura, adaptando-se bem ao capitalismo sem comprometer suas convicções.

Christian recrutou Marc du Pontavice após duas entrevistas. Na primeira, silenciosa e desconfortável, Marc teve uma impressão negativa, mas, surpreendentemente, recebeu uma promessa de emprego. Na segunda, mais amigável, Marc passou por uma prova oral com os gerentes gerais do grupo, que não entendiam de cinema, mas queriam avaliar sua capacidade intelectual. Em 1º de agosto de 1989, com 26 anos, Marc conseguiu o emprego dos sonhos.

Dois meses antes, Marc havia se casado com a diretora e roteirista Alix de Maistre, com quem já estava desde 1984. Eles se casaram em junho de 1989 em Saint-Martin-du-Mesnil-Oury, Calvados. O nascimento dos filhos, Lou em 1992 e Ivan em 1995, trouxe luz à vida de Marc, que enfrentou abusos na infância por parte de sua mãe. Alix abandonou a carreira de roteirista ao nascer de Ivan para se dedicar à escrita, aspirando dirigir uma produção. Desde 1996, a família vive em Vincennes.

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Graças ao nascimento de seus filhos, Marc conseguiu se reconectar com sua infância e formar um vínculo poderoso e indissolúvel com Lou. Quando sua filha tinha 15 meses, sua esposa Alix precisou filmar nas províncias por quase 6 meses. O período de separação foi muito doloroso para Marc, mas aproximou-o ainda mais de sua filha, que passou a iluminar sua existência. A alteridade feminina, que tanto sofrimento causou a Marc em sua infância e cuja imagem foi felizmente reparada por Alix de Maistre, teve um rumo milagroso com sua primogênita Lou. A vulnerabilidade associada a tanto amor preencheu-o de tal forma que a imagem da mulher nunca mais seria, para Marc, associada à violência. Quanto a Ivan, seu filho, Marc o vê como um garoto maravilhoso. Com Ivan, ele se vê refletido como em um espelho, revivendo os momentos lindos de sua própria infância.

Nos primeiros três meses de seu emprego, Marc ficou um pouco desiludido. Christian não notificou ninguém sobre sua chegada, e os executivos da CFC o olhavam de canto de olho, especialmente duas produtoras, Christine e Françoise. Uma delas, uma espécie de “relações públicas”, que encantava os artistas de cinema com talento maternal, efetivamente compensando as falhas relacionais de Christian. A outra, uma produtora de televisão egocêntrica, trabalhadora e sedenta por sucesso, que ao mesmo tempo conseguia passar a imagem de durona, parecia também charmosa. Ambas odiavam a ideia de serem controladas, direta ou indiretamente. Elas recorriam ao consultor jurídico do grupo pelas costas de Marc e, assim, evitavam sistematicamente sua opinião. Ele estava muito isolado, e Christian nem parecia esperar nada dele, estando apenas ocupado com a gestão do grupo SOFICA, co-controlado pelo estúdio cinematográfico mais antigo do mundo, a Gaumont.

Como fez durante todos os seus estágios anteriores, Marc analisou todos os contratos de filmes que estavam em andamento ou desenvolvimento, entendendo que essas linhas misteriosas são a base de toda a arquitetura econômica. Ele foi bem treinado um ano antes, durante um estágio com Claude Abeille, uma grande dama da produção, que lhe ensinou tudo sobre as estruturas jurídicas de um longa-metragem. Claude foi, por muito tempo, o braço direito do lendário produtor Daniel Toscan du Plantier na Gaumont, cujos excessos ela tentou conter com rigor e astúcia. Ela deixou a Gaumont para seguir Daniel na Erato, uma editora e produtora de música clássica cuja atividade ele expandiu para incluir a produção de filmes.

Claude trabalhou pouco diretamente com Toscan, mas cada vez que passava alguns minutos com ele, sentia de perto a magia especial do carisma de Daniel. Toscan a fascinava pelo dom da palavra. Ele não era bonito, mas assim que começava a falar, seu charme funcionava. Com sua voz ligeiramente aguda, ele cativava com inteligência e cultura brilhante. No entanto, Marc esteve sobretudo sob a orientação de Claude Abeille, que lhe ensinou a profissão desde sua face mais desafiadora. Não era o que ele sonhava, mas rapidamente percebeu a vantagem desse treinamento.

Na CFC, ele não estava fazendo estágio e não estava ali para aprender, o isolamento lhe pesava. Ele aproveitou um pretexto, uma minuta de contrato que considerou grosseira, para obter de seu patrão o que deveria ter imposto desde sua chegada: nenhum contrato poderia ser celebrado sem sua colaboração ativa. Christine e Françoise se viram então obrigadas a passar por ele. Na profissão, o contrato é o fundamento de toda a arquitetura econômica, fruto de longas negociações que o precedem e o quadro que organiza as relações entre as partes ao longo da produção e além. Assim, Marc se tornou indispensável. Logo, rapidamente, todos na CFC perceberam a utilidade da obrigação imposta por Christian.

Marc nunca estudou Direito formalmente, com a intenção de exercer carreira, nada o preparava para tal responsabilidade. Quando Christian o nomeou gerente jurídico e financeiro, ele não reclamou e preferiu acreditar que foi um mal-entendido. Marc rapidamente percebeu que com um pouco de domínio da linguagem jurídica poderia se impor, principalmente em questões contratuais. Sem experiência, mas com os ensinamentos de Claude Abeille, ele compreendeu que se a lei é a forma, a substância é uma questão de bom senso. Assim, conseguiu identificar a lógica e as rotinas.

Em poucas semanas, Marc aprendeu a arte de verificar tudo, desde identificar falhas até compreender as sutilezas. Sua velocidade lhe dava vantagem e grande autoconfiança, não só com seus colegas, que sentiram não poder mais viver sem ele, mas também com seus interlocutores. Rapidamente, lhe foi confiado muito mais do que a revisão de contratos, ele passou a investir também na própria negociação. Christian Charret, apesar de sua impressionante carreira profissional, tinha um grave problema: odiava conflitos e fazia de tudo para evitá-los. Rapidamente, Marc se tornou o “policial mau” enquanto Christian reservava para si o papel de “policial bom”, pois cabia a Marc negociar, uma tarefa que Christian lhe delegava com facilidade por outra razão: desprezava o dinheiro. Christian embora fosse um homem muito inteligente, foca apenas em fazer o que lhe importava, de modo que ganhar ou perder era para ele quase que indiferente, o que talvez até seria respeitável se não envolvesse o dinheiro de terceiros. A CFC perdeu quantias consideráveis em aventuras cinematográficas nos últimos anos. Cyril de Rouvre, no entanto, só aceitou essas derrotas graças à sua paixão pelo cinema.

Com o crescimento da produção televisiva, Christian teve a perspicácia de lançar o desenvolvimento de uma nova atividade, muito menos arriscada que o cinema. Os primeiros meses foram quase fáceis e Marc acabou por encontrar seu lugar. As pessoas começaram a sussurrar que ele era duro nos negócios e que seus contratos eram bastante elaborados, no entanto, ainda não havia enfrentado desafios reais e naquela época, o setor audiovisual francês era bastante rotineiro, de modo que desviar-se das normas era visto com desaprovação.

Foi então que Christian decidiu fazer com que a CFC conseguisse alcance internacional. Ele, que mal falava inglês e desprezava os anglo-saxões, decidiu coproduzir uma série internacional iniciada pelos canadenses para o mercado americano. Os canadenses buscaram os franceses devido à regulamentação francesa flexível, que aceitava coproduções em inglês e favorecia o financiamento tradicional de uma produção francesa, com ajuda do CNC e vendas para canais da França, que incluíam grandes séries em inglês em suas obrigações de investimento. Christian compreendeu perfeitamente o que estava em jogo e, com suas conexões, lançou-se a esse novo caminho.

Para a surpresa de Marc, ele quem ficou encarregado de negociar o contrato de coprodução com a empresa canadense Alliance, uma das maiores produtoras independentes do mercado norte-americano. Dirigida pelo magnata Robert Lantos, um apaixonado por cinema e astuto artesão de grandes séries internacionais, a nova série se chamava “Counterstrike” e seu orçamento era de 20 milhões de dólares.

Christian demonstrava insegurança para confiar em Marc, e Marc não se sentia menos inseguro ao aceitar tal responsabilidade, mas estava disposto enfrentar essa provação sozinho e tinha uma leve sensação de que era assim que iria aprender a penetrar no coração do mercado americano, o maior mercado audiovisual do planeta. Naquela época, Marc ainda não sabia que seu inglês era uma lástima, uma vez que sua passagem pela Alemanha o fez escolher o alemão como primeira língua, levando-o a abandonar por completo o inglês, mas nada justificava a falsa linha em seu currículo que Christian sequer teve o cuidado de verificar.

Eis que no início de janeiro de 1990, ele recebeu um projeto de contrato de 40 páginas em inglês e após um momento de pânico, começou a analisá-lo pelo lado mais simples, tentando identificar se a estrutura era fundamentalmente diferente de um contrato francês. Ele aprenderia nos próximos anos que os anglo-saxões são muito mais criativos na negociação, onde nenhum uso era necessário além do equilíbrio de poder. Marc se concentrou em entender a proposta, mas alguns detalhes lhe pareceram estranhos, às vezes certos, às vezes errados, esses detalhes causaram um grande mal-entendido em suas primeiras conversas com o advogado canadense. Havia uma expressão no contrato que afirmava que manteriam os rendimentos fora da França, mas por conta de seu inglês ruim, Marc interpretou a palavra “out” como “fora de” e não entendia por que queriam prejudicar a parte francesa das receitas do território. O resultado foi uma conversa absurda com o advogado repleta de mal-entendidos cômicos que acabaram por selar sua amizade. Assim, o advogado Leonard Rosman, um canadense radicado em Paris, percebeu que Marc não tinha muita experiência e ao invés de tirar proveito disso, preferiu lançar-se em um trabalho educativo que foi muito valioso para ele.

Depois de entender todos os detalhes da proposta, Marc pôde construir uma contraproposta. Mas essa negociação não poderia ser feita com Leonard Rosman, seria conduzida com Robert Lantos. Christian Charret encontrou um pretexto para enviar Marc em seu lugar. Em fevereiro de 1990, Marc pegou um avião para Monte Carlo, onde estava sendo realizado um festival de televisão, e lá teve a oportunidade de conhecer vários magnatas do audiovisual durante sua carreira. Quando anunciou que Christian estava em Paris, Robert não deixou transparecer nada, mas Marc soube mais tarde que Robert estava furioso por terem enviado um novato para negociar um acordo de 20 milhões de dólares, o que fez com que Robert incumbisse Leonard de conduzir a negociação.

A atividade televisiva cresceu rapidamente e em 18 meses, foram lançadas 3 grandes séries internacionais, incluindo duas com os canadenses e uma com alemães e italianos, além de alguns filmes televisivos para a France Télévisions. A parte cinematográfica também estava ativa, com a produção de um filme histórico de grande orçamento, “Brantôme“, dirigido por Jean-Charles Tachella, e um projeto que fascinava Marc: a adaptação de “A Peste” de Albert Camus, dirigida por Luis Puenzo. Marc estava em todas as frentes, pois tinha que gerir não só a parte jurídica, mas também a financeira. Todos os projetos eram muito ambiciosos, com orçamentos confortáveis, e começaram a atrair atenção para a empresa, especialmente a Gaumont, que tinha ligações com o grupo Robur, controlador da CFC através da Sofica Gestimage, da qual eram co-acionistas.

Gaumont / Divulgação

Marc era quem gerenciava a Sofica, administrando todos os arquivos de filmes que lhe eram apresentados. Através disso, conheceu Patrice Ledoux, diretor-geral da Gaumont, que propôs a Cyril de Rouvre a criação de uma joint venture chamada Gaumont-Robur Télévision, onde eles forneceriam a atividade e a Gaumont o capital para desenvolvê-la. Christian foi então nomeado CEO e ofereceu a Marc, em acordo com Patrice, a posição de Secretário-Geral desta nova empresa, mas com uma condição: ele teria que abandonar suas atividades na CFC.

Christian saiu como grande vencedor da história, pois podia continuar a gerir ambas as atividades, enquanto Marc, teve que tomar uma difícil e dolorosa decisão: desistir do cinema e da adaptação de “A Peste” de Camus, que ele apreciava, para se aventurar na televisão dentro da Gaumont.

Ele aceitou o trabalho para fazer cinema mas intelectualmente, ele tinha dificuldade em ver o que poderia agradar na produção televisiva e a insistência de Patrice Ledoux acabou não tendo influência. No fundo, Marc sabia que a CFC era apenas uma paixão de um bilionário que logo se cansaria dela, e que estavam apenas no início do boom da televisão, uma aventura emocionante a ser embarcada. Ele sabia também que Christian lhe daria liberdade nessa área, mas isso pouco lhe interessava, o que nunca aconteceria no cinema, onde continuaria a cuidar das tarefas administrativas e financeiras embora a Gaumont lhe apresentasse um horizonte promissor, uma vez que seria mais fácil voltar ao cinema quando ele provasse seu valor na televisão. Assim, foi promovido a secretário-geral do ramo televisivo da Gaumont, embora só tivesse entrado na vida profissional há 15 meses.

Em outubro de 1990, eles se mudaram para as instalações adicionais da Gaumont em Neuilly-sur-Seine. Christian tinha pouco interesse em logística, então Marc tinha que cuidar de cada detalhe, já que não podiam mais contar com a Robur ou a Gaumont para os serviços administrativos e financeiros. Isso o colocou na posição de um empresário montando sua empresa, com a diferença de que nunca enfrentaria problemas de fluxo de caixa, a partir disso ele aprendeu muito com essa primeira criação de negócio, especialmente sobre recrutamento.

Marc era um verdadeiro maníaco por controle na época e confiar nos outros era difícil para ele. Esse foi o grande aprendizado e desafio de sua vida profissional: aceitar delegar e confiar nos outros. Para chegar lá, ele teve que violentar sua psicologia, construída na recusa da dependência. Essas qualidades se baseavam no princípio da harmonia e do equilíbrio, e ele só entendeu isso muito tempo depois, ao formular uma intuição que praticou desde cedo na vida profissional.

Foi lendo um roteiro diligentemente que Marc conseguiu, pela primeira vez, colocar em palavras essa intuição. Naquele dia, ele sentiu a história como música e suas falhas como notas erradas. Talvez sua busca por harmonia fosse uma resposta ao caos de sua infância, e por isso ele aplicava tal obsessão em tudo. Anos depois, ao negociar o contrato mais importante de sua carreira em Los Angeles, ele ouviu os contratos escritos em inglês e propôs soluções que melhoraram a situação para todos.

Uma vez, uma diretora de produção desanimou com o que chamava de seu radar, que em poucos minutos detectava as insuficiências de um orçamento em que ela havia trabalhado horas. Ele simplesmente usava sua concentração para captar a sonoridade que o orçamento produzia, percebendo que um valor investido para a produção emite várias notas erradas antes de encontrar harmonia.

Antes de Marc tomar sua decisão, Patrice Ledoux e Christian Charret não disseram que a Gaumont iria impor um diretor-geral, um homem da Robur: Michel Schmidt, também diretor de vendas internacionais da Gaumont, e que foi nomeado para o cargo. Michel era brilhante e confiável, mas rabugento e sem conhecimento em produção televisiva. Marc ofereceu uma resistência passiva e cortês, e Michel, sem vontade de lutar, aos poucos desapareceu, tornando seu título uma mera ficção.

Christian dividia seu tempo entre suas duas empresas, confiando totalmente em Marc com a logística, incluindo a de produção. Marc estava aprendendo rapidamente o controle orçamentário e sabia se cercar de boas pessoas, para impulsionar o desenvolvimento internacional, decidiram fazer duas grandes contratações, que foram um produtor executivo e um produtor criativo: Denis Leroy, que aceitou rapidamente a proposta de Marc para o cargo de produtor executivo.

Na época, a Gaumont ainda era um mito na profissão, dominando todos os setores do cinema e com um catálogo prestigiado além do apoio financeiro da família Seydoux. Nicolas Seydoux, o CEO, estava envolvido na vida da empresa, especialmente desde a saída do ex-diretor-geral, Daniel Toscan du Plantier. A produção televisiva era uma prioridade, apesar de ser considerada “sub-cinema”.

Patrice apoiou a contratação de um produtor criativo americano por um salário surpreendente, queriam desenvolver séries internacionais sem depender dos canadenses, precisando de alguém que supervisionasse o processo criativo, especialmente a escrita em inglês, e lançasse os produtos às emissoras europeias e americanas. Conseguiram isso com Marla Ginsburg, uma produtora nova-iorquina que se juntou a eles em Paris em março de 1991. Juntos, formaram uma dupla eficaz que impulsionou a Gaumont Television para o círculo fechado da produção internacional. Marla cuidava da criação e das vendas, enquanto Marc negociava contratos, supervisionava a produção e gerenciava a logística. Reportavam a Christian, que era benevolente e desinteressado, e a Gaumont olhava tudo de longe, sem se envolver muito. A primeira façanha de Marla foi adquirir os direitos de adaptação do filme “Highlander – O Guerreiro Imortal” no Festival de Cannes de 1991.

Quando Marla chegou à Gaumont Television, seu francês era inexistente e o inglês de Marc mal progredira, confortável apenas com o inglês dos contratos. Como iriam se comunicar? Marla, como a maioria dos americanos em Paris, sentia que cabia a Marc se adaptar. Além disso, ao retornar do Festival de Cannes, ela pediu que ele ligasse para os produtores de “Highlander” para negociar a aquisição dos direitos de adaptação para TV, e eis que o pesadelo recomeçava: Ele precisaria negociar diretamente em inglês, sem a possibilidade de ler contratos em francês. O estresse da situação fez com que Marc postergasse a situação por alguns dias, mas Marla era agressiva e ele teve que arriscar.

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O filme “Highlander”, lançado em 1986, dirigido por Russell Mulcahy, estrelado por Christopher Lambert e o saudoso Sean Connery, e com trilha sonora da famosa banda britânica Queen, é considerado um clássico por muitos. O sucesso do projeto surpreendeu a todos. A interpretação magnífica de Christopher Lambert confirmou, após seu desempenho em Greystoke – A Lenda de Tarzan, seu status de ator cult. Apesar de ter uma bilheteria modesta nos EUA, o longa era independente, não produzido por um grande estúdio. A propriedade pertencia a dois produtores independentes, Bill Panzer e Peter Davis.

Bill e Peter são da geração que viveu a ascensão do cinema independente dos EUA na década de 70 e não cediam facilmente, mesmo para grandes empresas. Marc teria a oportunidade de perceber isso e aprender muito com eles, pois são excelentes negociadores e não desistem facilmente. Bill era o criativo e Peter o empresário. Felizmente, Marc não tinha que lidar inicialmente com eles, o que teria sido extenuante. Naquele momento, estavam ocupados com o lançamento de Highlander 2 – A Ressurreição”. Eles confiavam a negociação a um intermediário, Steven Maier, que conhecia bem os mistérios da televisão e prometia muito a Peter Davis.

Steven exigia $100,000 por episódio. Para a primeira temporada de 22 episódios, isso representava $2,2 milhões, quase 10% do orçamento previsto. Enquanto Marc negociava, Highlander estava no auge, e Steven convenceu Peter Davis a deixá-lo negociar com os europeus, prometendo mais dinheiro e participação no controle criativo, algo que uma emissora de TV americana nunca aceitaria. Obcecado por esse número, Steven parecia mais flexível na distribuição dos lucros, e Marc impôs que mais da metade das filmagens da série fossem realizadas na França, com pessoal majoritariamente francês, protegendo o papel de Marla.

Restava discutir uma cláusula sobre os créditos na abertura. Marc argumentou a favor de Christian e Marla; para sua surpresa, seus interlocutores cederam e concordaram em dar-lhes um lugar de destaque. Em troca, exigiram um lugar nos créditos finais, sobreposto à última imagem.

Com o acordo assinado, Marla pôde desenvolver o lado criativo. Ela se dava bem com Bill e tinham material convincente. Juntos, percorreram o mundo dos grandes compradores e conseguiram diversas ofertas dos maiores canais de televisão europeus, incluindo TF1 (França), RTL (Alemanha), Itália 1 da Mediaset (Itália) e Amuse Video (Japão).

Restava conquistar os Estados Unidos, onde era mais complicado. As emissoras americanas precisavam de garantias para o controle das filmagens. Para tranquilizá-los, prometeram filmar parte da série em Vancouver, Canadá. Recorrem à Rysher Entertainment, uma distribuidora americana especializada no mercado de first-run syndication, um mercado poderoso de canais locais. A Rysher, controlada por Keith Sample e Tim Helfet, raramente tinha a oportunidade de colocar as mãos em uma série com esse nível de orçamento, geralmente reservado para as grandes emissoras. Eles colocaram quase um quarto do orçamento total.

Era março de 1992, e a situação era vertiginosa. Nunca antes uma empresa não anglo-saxônica estabeleceu um orçamento de mais de $25 milhões para uma série de TV. No final das negociações, Marc conseguiu manter 100% da propriedade da obra nas mãos da Gaumont Television. Estavam construindo um dos melhores ativos televisivos do mercado internacional. A empresa-mãe não conseguia acreditar no sucesso e tudo parecia sorrir para eles.

Mas havia um problema: os parceiros internacionais incluíram uma cláusula condicional em seu compromisso, exigindo a participação de Christopher Lambert como convidado nos primeiros episódios. Parecia menos problemático porque Peter e Bill haviam obtido seu acordo algumas semanas antes. No entanto, quando faltavam menos de três meses para as filmagens, Peter ligou para Marc informando que Christopher havia mudado de ideia e não queria participar de uma série de televisão, especialmente no papel que desempenhou no cinema. Marc tentou persuadir o agente de Christopher, mas ele não queria ouvir nada.

Naquele momento da história, Marc não acreditava em catástrofes. Afinal, Christopher Lambert teria apenas um papel secundário na série, já que não estava no centro do processo criativo e o papel principal havia sido dado a Adrian Paul. Marla e Marc conseguiram convencer todos os sócios a desistirem de Christopher Lambert, com exceção da RTL, que ameaçou não honrar seu contrato se Lambert não fizesse parte do elenco. A contribuição da RTL era significativa, representando mais de $8 milhões, cerca de um terço do orçamento.

Com menos de dois meses para o início das filmagens, e com tanto dinheiro já empenhado, voltar atrás parecia impossível. Informar a Gaumont sobre a situação poderia levar ao cancelamento do projeto, causando grandes perdas e prejudicando a confiança do grupo. Com o apoio de Christian Charret, Marc decidiu negociar diretamente com o agente americano de Christopher Lambert.

Com o passar dos dias, as demandas do agente aumentavam, causando grande estresse para Marc. Christian desviava o olhar, e Marla estava ocupada com a preparação das filmagens. Marc sentia-se sozinho, recebendo ligações do agente no meio da noite. Em uma madrugada, após a recusa definitiva de Lambert, Marc ficou prostrado, deixando a água do banho transbordar e inundar o apartamento. Acordado por Alix, ele explicou a situação de maneira absurda, o que os fez rir incontrolavelmente, aliviando a tensão.

Marc decidiu tentar uma última abordagem. Ligou para seu contato na RTL e perguntou se um único episódio com Christopher Lambert seria suficiente. Para seu alívio, a resposta foi afirmativa. Marla rapidamente ajustou o roteiro para que o primeiro episódio fosse a passagem do bastão entre Connor e Duncan MacLeod. Marc negociou com o agente de Lambert, oferecendo $2 milhões por sete dias de filmagem. Após um breve silêncio, o agente aceitou a proposta.

Com o acordo firmado, Marla pôde seguir adiante com as emissoras. Durante o verão e outono, desenvolveram o lado criativo. Marla e Bill Panzer se deram bem, e a adaptação de Highlander ganhou vida. Marc negociou os acordos e em poucas semanas, garantiram ofertas dos maiores canais de televisão europeus, incluindo TF1 (França), RTL (Alemanha), Italia 1 (Itália) e Amuse Video (Japão).

No entanto, nos Estados Unidos, o desafio era maior. As emissoras americanas exigiam garantias para o controle das filmagens. Para tranquilizá-las, prometeram filmar parte da série em Vancouver, Canadá, e recorreram à Rysher Entertainment para distribuição. A Rysher, controlada por Keith Sample e Tim Helfet, comprometeu-se a financiar um quarto do orçamento total.

Em março de 1992, as negociações estavam vertiginosas. Nunca uma empresa não anglo-saxônica havia estabelecido um orçamento de $25 milhões para uma série de televisão. No final, Marc conseguiu manter 100% da propriedade da obra nas mãos da Gaumont Television. Contudo, os parceiros internacionais incluíram uma cláusula condicional: a participação de Christopher Lambert nos primeiros episódios. Com a aceitação de Lambert, a Gaumont Television foi salva, e a série Highlander tornou-se um exemplo no mercado internacional.

Desafios e Transformações

A primeira temporada foi um sucesso, especialmente nos Estados Unidos. Marla e Marc começaram a trabalhar na segunda temporada, dedicando-se também a outros programas franco-franceses com Françoise Bertheau. Contudo, dois eventos desagradáveis abalaram o otimismo deles.

Primeiro, a RTL da Alemanha decidiu não continuar, apesar da boa audiência. Optaram por investir diretamente na aprendizagem de métodos de produção, fazendo um acordo de coprodução com a Columbia. Segundo, na França, os decretos Tasca de 1992 desencorajavam a produção de ficção em língua estrangeira, reduzindo a capacidade de investimento em séries internacionais. Isso ameaçou todo o modelo econômico da Gaumont Television.

A M6 substituiu a TF1, mas com uma contribuição menor. A coprodução canadense foi essencial, com recursos financeiros significativos graças à ajuda governamental. Ainda assim, estavam longe do alvo, necessitando do mercado americano. A Rysher aumentou sua contribuição, mas ainda faltavam 15% do orçamento.

Marc pediu aos advogados em Los Angeles que investigassem a Rysher e descobriu que estavam prestes a vender a empresa. Com isso, Rysher não podia viver sem a segunda temporada de Highlander. Com o tempo se esgotando, Marc convenceu Christian Charret a exercer a opção apesar do financiamento insuficiente. Ao exercer a opção, Marc recuperou o controle dos direitos, causando pânico na Rysher. Após 72 horas de negociações intensas em Los Angeles, a Rysher comprometeu-se a financiar 80% do orçamento por várias temporadas, deixando a distribuição internacional para eles, enquanto a Gaumont manteve a participação majoritária nos lucros.

Novos Horizontes

Marc, apesar de ter conduzido a Gaumont Television através da tempestade, sentiu uma insatisfação. O júbilo das negociações não concretizava suas aspirações intelectuais e artísticas. No início de 1993, ele começou a se sentir entediado, ansiando por novos desafios. Seu destino, no entanto, estava apenas começando a se desenrolar num sentido bem animado…

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não remete necessariamente a posição do ANMTV*