Mangá sofre censura no Japão por abordar religião como tema e é cancelado

Shueisha / Yomitai Web Media / Divulgação

De acordo com informações do site japonês Yomitai, o web mangá “Kami-sama” no Iru Ie de Sodachimashita ~Shūkyō 2-Sei na Watashi-tachi~ (A Home Life With God ~We Children Born Into Religion~) que vinha sendo publicado virtualmente na plataforma desde setembro de 2021 teve sua publicação cancelada a pedido da própria Editora Shueisha.

Os motivos alegados foram, nas palavras de porta-vozes do departamento editorial, “conteúdos que ofendem a fé de um grupo religioso em particular” e “verificação insuficiente de fatos abordados nos capítulos” respectivamente. A obra contava com 5 capítulos até então e o seu quinto e último lançado havia sido retirado de circulação com base na primeira justificativa, com os demais saindo também de circulação desde março, quando foram retirados baseados na segunda. Especula-se que os responsáveis pelo cancelamento seriam um grupo religioso intitulado Happy Science (Kofuku No Kagaku), que tem ganhado força e exercido alguma influência em veículos midiáticos japoneses detendo o controle inclusive de um partido político, embora o nome de tal instituição não conste em quaisquer declarações oficiais referentes ao acontecimento.

A obra é de autoria de Mariko Kikuchi e abordava no formato de antologia com diferentes histórias as percepções e a vida de crianças que nasceram em famílias que seguiam determinadas religiões e acabavam aderindo à fé que os pais e familiares seguiam independente de seus próprios entendimentos e escolhas sobre as crenças e práticas adotadas. Para elaborar a temática da publicação, a autora usou como base tanto sua própria experiência de vida quanto inúmeras entrevistas feitas com ex-membros de diferentes grupos religiosos.

Segundo afirmações divulgadas por Kikuchi ao periódico japonês FLASH, os problemas com seu trabalho começaram quando seu editor solicitou a ela que alterasse as artes referentes ao altar e a instituição que foram mostrados no último capítulo. Posteriormente, Kikuchi foi informada de que teria que revisar todos os capítulos divulgados até então e de que o relato de uma única pessoa entrevistada não poderia fornecer informações o suficientes para uma pesquisa propriamente dita, porém não foi respondida ao questionar à equipe editorial quantos depoimentos seriam necessários para que as informações coletadas fossem consideradas válidas.

Incomodada com a situação, Kikuchi recusou-se a modificar o que já havia feito e solicitou por conta própria encerrar suas atividades, argumentando que percebeu as ordens que chegaram até ela como uma tentativa de suprimir o que era dito por egressos dos grupos religiosos abordados no mangá que vinha sendo produzido. Disse também que a intenção da publicação não era fazer crítica alguma aos grupos retratados e sim dar forma a relatos de experiências pessoais dos que em algum momento estiveram envolvidos com eles, e que dadas as circunstâncias acharia estranho que fosse demonstrada consideração em demasia por parte de alguém a uma ou outra religião, indicando inclusive que a própria Shueisha considerou a ação dos responsáveis como “irracional” em um primeiro momento e destacando que não estava autorizada a mencionar  publicamente os reclamantes ou sequer o que estava sustentando as reivindicações.

A autora também engrossou suas críticas ao trazer a público que lidar com o tema religião tem virado um tabu no país e se posicionar firmemente contra a ideia de alterar um relato pessoal pelo incômodo de quaisquer grupos que venham a se sentir ofendidos, comentando também que a ideia de que a impossibilidade de se abordar uma determinada temática é um claro indicativo de que não existe mais o conceito de “liberdade de expressão” que é de entendimento geral, mas agradeceu à segurança que a Shueisha lhe ofereceu contra possíveis ações de âmbito jurídico, embora lamentasse que o mesmo não pudesse ser feito em relação à sua criação.

Ao serem procurados pela Flash para se pronunciarem sobre o assunto, o Happy Science através de seu departamento de relações públicas comunicou que tinha conhecimento sobre o mangá que vinha sendo produzido por Kikuchi e que o mesmo continha em suas palavras “inúmeras imprecisões fatuais, um retrato injusto e negativo de suas práticas e doutrinas e uma confusão sobre a busca por independência dos indivíduos de seus pais com a forma como lidavam com o exercício da fé religiosa” mas defenderam-se das acusações de censura ratificando que a Shueisha teria tomado suas decisões de forma independente, e sem influência de membros ou líderes da instituição.