Lançado em janeiro de 2013, sendo uma produção do estúdio AIC, Kotoura-san é um anime baseado no mangá 4koma de mesmo nome, escrito por Enoziku, que narra a história de uma menina nascida com a habilidade de ler mentes. Ao entrar em uma nova escola, ela conhece Manabe, um garoto que rapidamente se apaixona por ela, bem como Yuriko e Muroto, membros do clube de pesquisas do sobrenatural da escola, que a pedem que se junte ao clube.
Entre a comédia e a tragédia
Para todos os efeitos, Kotoura-san é um anime de comédia. Uma comédia romântica, inclusive, que se resolve, sobretudo, na relação entre Kotoura e Manabe. Isso dito, o anime não é só cômico. Agora, antes de continuar, se você ainda não viu o anime, é recomendado que assista pelo menos o primeiro episódio antes de ler os próximos dois parágrafos. Isso porque neles têm alguns detalhes do primeiro episódio e, honestamente, ele em especial é muito melhor se você assistir sem saber o que vai receber.
Quando o anime começa, Kotoura ainda é uma criancinha. E nós vamos vendo como seus poderes vão se manifestando, como ela não consegue distinguir entre o que as pessoas estão pensando e o que estão falando, e, acima de tudo, vemos os problemas que isso traz. E o que poderia ser apenas uma coletânea de cenas engraçadinhas da personagem angariando algumas broncas aqui e ali, acabou sendo uma das sequências mais dramáticas, emocionais e tristes que eu já vi em um anime. Sério: os primeiros dez minutos do primeiro episódio são extremamente tristes. Kotoura é continuamente isolada, verbalmente atacada, culpada pelo divórcio de seus pais e abandonada num templo pela própria mãe.
Ah, e quando você acha que a menina não pode sofrer mais, ela faz amizade com um gatinho de rua apenas para no dia seguinte descobrirmos que alguma velhinha levou o gatinho para um abrigo. E honestamente: a cena em que a Kotoura é deixada sozinha na chuva depois de descobrir que o gato foi levado embora é de partir o coração, quando você considera o tanto que a garota já sofreu até aquele ponto. Tem pouquíssimas vezes que consigo engolir um personagem ficar com aqueles olhos sem expressão, mas quando Kotoura aparece assim, sem qualquer vida, luz ou esperança nos olhos, não apenas é trágico, como é perfeitamente compreensível. E pensar que um anime rotulado como “comédia” começa assim…
Agora, tudo o que acontece nessa primeira metade do primeiro episódio serve de preparo para a piada que viria quando Kotoura encontra com Manabe, na sala de aula de sua nova escola. Mas essa estrutura narrativa muito bem define o que será o anime. Como já foi mencionado, é uma comédia, mas não se limita a isso. O anime combina em si mesmo elementos de diversos gêneros, incluindo drama, romance e até mesmo mistério e investigação. E funciona. Sobretudo por conta de um elemento em especial.
Os personagens
Com o foco sendo, em sua maior parte, na interação entre seus personagens, grande parte da estrutura funciona justamente por conta destes, que são surpreendentemente bem desenvolvidos para um anime do tipo.
Eu digo “surpreendentemente” porque em animes de comédia, ou com maior enfoque nela, os personagens costumam ser apenas estereótipos de si mesmos, reduzidos a uma ou duas características que serão usadas como alavanca para impulsionar o roteiro em direção à piada final. Muitos animes de sketches funcionam com essa premissa, na qual os personagens são apenas uma ferramenta da graça. Kotoura-san, porém, se encaixa em uma outra categoria, na qual a comédia é uma ferramenta no roteiro, e não este uma ferramenta naquele.
Assim sendo, os personagens precisavam combinar com o tom da série. Precisavam ser suficientemente estereotipados, com um ou dois traços facilmente identificáveis, para que combinassem com as cenas de comédia, mas também precisavam ser bem desenvolvidos e profundos o bastante para que nos importássemos com eles quando das cenas mais sérias. O balanço entre esses dois aspectos é fundamental, pois ter demais de um ou de outro poderia facilmente fazer as atitudes cômicas ou sérias dos personagens soarem como forçadas.
Felizmente, souberam dosar. Manabe é um idiota que só pensa “naquilo”, mas um de bom coração e podemos ver o quão profundamente ele se importa com a Kotoura. Yuriko é absolutamente obcecada com a ideia de provar que o sobrenatural existe, mas seu objetivo é bem explicado em seu passado, talvez tão dramático quanto o da própria Kotoura. Muroto é outro fascinado pelo oculto, mas guarda um lado gentil e é extremamente preocupado com Yuriko. Moritani é, talvez, o elemento mais destoante do grupo principal, considerando que tanto sua história de vida como suas ações na série pendem muito mais para o drama e a seriedade, mas ao mesmo tempo ela é um bom balanço ao próprio Manabe, cujas ações pendem mais para a dissimulação. E, claro, temos a Kotoura, que começa altamente fechada em si mesma, mas vamos vendo o quanto ela pode se importar profundamente com os outros.
Um bom balanço… Mas não sem problemas
“Balanço” é o que define esse anime. E acreditem, isto não é fácil. Inclusive, seria muito mais fácil fazer a trama pender demais para um ou outro lado, focando no drama ou nas piadas. Mas ele não faz isso, e para uma obra que mescla em si mesma tantos gêneros diferentes, a história como um todo é surpreendentemente fluida, transitando entre estes diferentes aspectos com o devido cuidado.
Obviamente, isso não é dizer que o anime não tem suas falhas, embora eu diria que estas serão muito pessoais. É relativamente fácil julgar uma cena de luta, como também não é difícil dizer quando uma cena dramática foi bem dirigida ou um mistério adequadamente explorado. Mas é extremamente difícil julgar uma piada. A verdade é que no final não existe um medidor ou critério para dizer o que define uma boa sacada. Adicione a isso questões culturais, morais e de maturidade e acaba que é praticamente impossível fazer uma piada que sempre irá agradar a todos.
E para mim, a comédia do anime falha nas constantes piadas envolvendo a imaginação do Manabe, embora não pretenda entrar em detalhes aqui (quem viu o anime sabe o que quero dizer). Verdade seja dita, não posso dizer que a maioria das piadas desse tipo são “inúteis” ou “desnecessárias”, pois acabam por ajudar a delinear e consolidar a personalidade do personagem. Mesmo assim, não é o tipo de humor que eu goste, especialmente quando esse tipo de piada não vem do Manabe, ai que fica realmente desconfortável. É algo pessoal, sim, e certamente haverá aqueles que darão risada com estas piadas, mas para mim é algo que podia ser retirado.
No entanto, como qualquer anime de comédia, Kotoura-san possui um repertório bastante diversificado de piadas. E devo dizer: quando elas funcionam, definitivamente funcionam. Eu talvez não tenha rolado no chão de tanto rir, mas o anime certamente garante algumas boas risadas, tanto quanto garante algumas boas lágrimas aqui e ali.
Mais do que precisava ter sido
Sendo bastante sincero, Kotoura-san é mesmo mais do que ele precisava ser. A obra é inspirada em um manga 4koma, e esse tipo segue uma estrutura semelhante às nossas tirinhas. Você tem um primeiro quadrinho, que dá o setting da cena. Um segundo quadrinho desenvolve esse setting, e o terceiro dá o clímax. Finalmente, o quarto quadrinho dá a reação dos personagens e qualquer outra consequência advinda das ações ou falas do quadrinho anterior. É um formato especificamente usado para a comédia, que mesmo quando usado para assuntos mais sérios o faz de forma satírica e cômica.
Honestamente, não li o mangá, mas considerando o formato, tenho quase certeza de que esse balanço entre a seriedade e o drama, no nível que é feito, é um mérito específico do anime. Além disso, considerando que o mangá ainda estava em publicação quando o anime foi lançado, o final do anime é surpreendentemente satisfatório.
Tudo isso só mostra que os criadores da obra colocaram nesse anime bastante esforço e consideração, mesmo mais do que precisariam, resultando em uma obra bastante curiosa. Uma divertida e acalorada combinação de drama e comédia, com personagens carismáticos e uma bela animação, capaz de fazer rir e chorar. Certamente um título que vale a pena conferir.
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