Análise: Scott Pilgrim: A Série – O público precisa sempre ser surpreendido?

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Este texto contém spoilers!
Lembro que fui apresentado a Scott Pilgrim Contra o Mundo no início dos meus 20 e poucos anos, e diria que não haveria melhor período da vida para ser apresentado à obra escrita e desenhada pelo quadrinista canadense Bryan Lee O’Mailey. Assumo que quando ouvi pela primeira vez o nome do filme de 2010 produzido pela Universal Studios, não sabia direito do que se tratava e até imaginava um… besteirol americano ao estilo American Pie, sem colocar muita expectativa no que fui convidado a conferir. Fui assistir ao longa-metragem ainda em DVD atendendo ao chamado de um então amigo da época no período onde morava em uma outra cidade e estava começando os anos de faculdade, e conforme fui assistindo, e entendendo do que a premissa se tratava., admito que fiquei simplesmente fascinado com a obra, não pela sua premissa de roteiro, que é no geral bastante simplória, mas principalmente por sua execução.
Fui, como muitos que frequentam o site, um adolescente aficionado por jogos e anime, e foi com Scott Pilgrim que vi pela primeira vez as características típicas de tais mídias bem traduzidas para um filme hollywoodiano. Quando descobri de onde a produção foi originalmente baseada, fui atrás dos quadrinhos originais e juntei a minha curta grana de estudante universitário sem bolsa para comprar as graphic novels publicadas no Brasil pela editora Companhia das Letras em uma tacada só através da loja online Submarino e os devorei em uma única semana percebendo então as consideráveis diferenças entre o que o diretor Edgar Wright levou às telonas e as HQs produzidas entre os anos de 2004 e 2010, mas sem me incomodar em nada com as mudanças, uma vez que entendia que ambas as mídias tinham suas próprias particularidades e praticamente se complementavam, tal qual muitos mangás e animes. Os quadrinhos trabalhavam bem a dinâmica de parte da adolescência e dos relacionamentos entre jovens na casa dos 20 anos, fator que casava com o período de vida onde estava lendo a obra, enquanto o filme focava na ação, nos efeitos especiais e no movimento em suas quase 2 horas de tela.
Só alguns anos depois, tive acesso ao jogo eletrônico baseado na série graças a um relançamento feito pela Ubisoft para PC e consoles da atual geração pois no período em que o game foi lançado originalmente eu sequer tinha Playstation 3 e por isso não pude satisfazer a minha fome por produtos da franquia com essa outra alternativa, começando a jogá-lo em um período da minha vida onde o meu interesse por Scott Pilgrim já tinha esfriado bastante e eu já estava inclusive interpretando o que havia lido e visto de outra maneira por conta da idade mais avançada somado também à familiarização que adquiri sobre o artifício de Hollywood conhecido como Manic Pixie Dream Girl* e a percepção de que parte da proposta e dos personagens trazidos pela obra passaram a ser um tanto quanto mal ressignificados por uma geração inteira de moças e rapazes alguns anos depois do sucesso do filme e a descoberta das HQs por muitos.
E onde o mais recente anime lançado para a Netflix batizado de Scott Pilgrim – A Série se encaixaria em meio a tudo isso? Basicamente, eu diria que como uma forma de não só trazer de volta as atenções de fãs mais antigos à obra máxima de O’Mailey como também de apresentar essa mesma obra a uma geração nova que se na época do filme era criança ou estava no início da adolescência, agora estaria próxima da faixa etária ao qual o produto se destina, mas será que de fato a adaptação de Scott Pilgrim para a mídia anime foi de fato bem sucedida naquilo que se propôs?? É o que saberemos lendo a crítica a seguir…
E se Scott Pilgrim fosse derrotado?

Netflix / Science SARU / Divulgação
Ao se falar sobre a premissa básica de Scott Pilgrim Contra o Mundo não é preciso ir longe para discorrer sobre do que a obra se trata, pois basicamente aqui o público é apresentado a um jovem canadense protagonista de 23 anos que divide sua moradia com um colega de casa gay chamado Wallace Wells e que tem como sua rotina diária dividida entre ensaiar com a banda de rock Sex Bomb-Omb, onde atua como baixista, e o namoro com uma estudante de ensino médio de 17 anos chinesa chamada Knives Chau, fato que o faz ser julgado e ridicularizado pelos seus amigos e companheiros de banda. Um dia, Scott descobre que uma garota que até então só via em seus sonhos existe de verdade e acaba se apaixonando pela então misteriosa Ramona Flowers, sendo surpreendentemente correspondido em sua investida amorosa. No entanto, a vida do rapaz passará a ter um pouco mais de agitação do que ele mesmo esperava ao descobrir que para poder seguir adiante com seu novo relacionamento precisará derrotar um grupo de inimigos conhecidos como “Liga dos 7 Ex-Malvados” que é formada basicamente por antigos parceiros amorosos de sua nova namorada e que agora desejam destruí-lo a qualquer custo.
E é por aí que o anime segue? Certo? e a resposta é… Não.
O primeiro episódio adapta de forma mais ou menos fiel e à sua própria maneira os mesmos eventos vistos tanto no filme quanto na HQ de quando Scott conhece Ramona até o momento em que terá que lidar com o vilão Matthew Pattel, o primeiro dos 7 adversários que Scott teria que enfrentar, teria se não tivesse sido simplesmente derrotado, e é aí que se encerra o primeiro capítulo da nova versão, com o herói da série aparentemente sumindo de vez e é a partir disso que o enredo começa a assumir rumos completamente diferentes em relação ao material original.
O que vem nos episódios a seguir são momentos onde o personagem recebe um funeral simbólico e posteriormente enquanto toca adiante sua vida, a própria Ramona descobre que Scott na verdade ainda está vivo em algum lugar percebendo mais tarde que o rapaz foi na verdade capturado, com a trama central consistindo em Ramona tentando solucionar o mistério por trás do desaparecimento de Scott tendo como alguns dos suspeitos pessoas que tiveram ou tem algum envolvimento com Scott e os seus próprios ex-namorados malvados.
Reboot disfarçado?

Netflix / Science SARU / Divulgação
Promovendo o anime como uma nova e aparentemente mais fiel adaptação dos quadrinhos que usa como mídia a animação japonesa, foram convocados para a produção todo o elenco de atores que participou do longa metragem em 2010 para emprestarem as suas vozes às encarnações animadas de seus antigos papéis na opção de áudio original em inglês. Até mesmo o diretor do longa metragem, Edgar Wright, aparece aqui na função de produtor executivo e Bryan Lee O’Mailey supervisionou a produção diretamente, fatos que por si só encheram as expectativas de qualquer fã de longa data somado ao pôster promocional e os trailers divulgados pela própria Netflix de que essa poderia ser talvez a melhor versão já feita da história da preciosa vidinha de Scott Pilgrim. Todavia, não foi bem assim que vários fãs de longa data da obra a perceberam.
Apesar de cenas de ação animadas com bastante competência pelos nipônicos do Science SARU (Devilman Crybaby, Keep Your Hands Off Eizouken) e até de algumas piadas que fazem um bom uso de metalinguagem, como o próprio enredo do live action sendo referenciado como uma ficção creditada a princípio pelo personagem Young Neil, com direito também a um outro personagem original que satiriza o próprio diretor de forma hilária, o que os espectadores são apresentados aqui ao longo de 8 episódios de em média 27 minutos de duração é a uma trama que complexifica uma história originalmente de premissa simples, divertida e direta ao ponto usando elementos de mistério que com “saltos triplos carpados de roteiro” acabam chegando a um desfecho um tanto quanto vazio e desnecessariamente exagerado envolvendo até (e de forma bastante porca) o tema viagem no tempo.
O que exatamente isso quer dizer?? Bem, próximo ao clímax do programa, Scott retorna para casa surpreendendo a todos enquanto Ramona apresenta aos amigos do garoto suas próprias conclusões de investigação: a possibilidade de Scott ter sido sequestrado por um…robô “vegano” construído pelos gêmeos Kim e Kyle Katayanagi, que aparece de forma disfarçada em certos momentos ao longo dos capítulos como um recurso aparente de foreshadowing**.
Nos últimos dois capítulos somos então revelados ao fato de que o próprio Scott já adulto no futuro arranja um jeito de cruzar o espaço tempo para impedir que sua versão mais jovem derrote os 7 ex-malvados, case-se com Ramona e experiencie alguns anos depois um doloroso divórcio. Mas calma, que é posterior a essa “brilhante revelação” que a coisa fica ainda mais enrolada.
Ao longo dos eventos que os espectadores vão sendo expostos descobrimos que uma Ramona Flowers do futuro escreveu o roteiro de um filme que seria creditado a Young Neil sem aparentemente se dar conta que o próprio filme daria muito errado e arruinaria carreiras e até relacionamentos de personagens conforme mostrado em um dos episódios que mostra o documentário da produção fracassada, e vejam bem, em nenhum momento ao longo dos oito episódios fala-se sobre “linhas do tempo alternativas”. Aqui a linha do tempo é uma só, e as próprias versões do futuro dos personagens cometem erros que eles mesmos não conseguem prever levando a um confronto final completamente aleatório e estapafúrdio onde o Scott do presente, Ramona e os próprios ex-malvados confrontam uma versão de Scott muito mais velha baseada nos personagem Akuma e Ryu de Street Fighter, esse último em sua versão corrompida pelo poder do Satsou No Hadou. Esse parágrafo lhe pareceu um tanto quanto confuso? Acredite, vendo na série a coisa pode ser ainda mais…
Um autor que não suporta mais reescrever sua própria obra?

Netflix / Science SARU / Divulgação
Talvez o maior plot twist relativo a Scott Pilgrim Takes Off (nome original da série e que pode ser traduzido literalmente como Scott Pilgrim Decola) está em saber que a mudança drástica nos rumos da série não foi uma intervenção dos japoneses envolvidos na produção ou do próprio produtor executivo Edgar Wright e sim de Bryan Lee O’Mailey, que decidiu trazer uma abordagem completamente diferenciada à série que o tornou famoso ao lado do produtor BenDavid Grabinski, inclusive para que o projeto fosse aprovado pela própria Netflix.
Em entrevista dada ao portal Comic Book, O’Mailey teria afirmado que: “Passar três anos refazendo a mesma coisa que fiz há 20 anos seria assustador” e foi endossado por Grabinski que teria dito que se o anime seguisse fielmente o material em que foi baseado cairia em um puro e simples “jogo de comparação”, fato que o incomodaria por dedicar 3 anos de seu trabalho a fazer algo que inevitavelmente seria comparado a outras produções relacionadas à mesma franquia, uma vez que, de acordo com os dois, muitos que assistiriam o anime seriam pessoas que já talvez teriam lido os quadrinhos, assistido o filme e jogado o game.
O mesmo produtor chegou a comentar que a diversão da série seria a do público “não saber o que está por vir” e que o marketing proposto foi apoiado pela Netflix, assumindo inclusive a culpa caso uma parcela do público ficasse furiosa com o que viu e é talvez nessa parte que temos o ponto mais polêmico.
Querer surpreender o público nem de longe é um problema na indústria de entretenimento, mas omitir informações pontuais que possam ajudar as pessoas a entenderem a proposta de uma produção e esperarem o que está por vir pode sim ser bastante problemático e é preciso que produtores, diretores e roteiristas entendam que existem formas certas e erradas de surpreender a audiência, assim como que às vezes os espectadores simplesmente não querem ser surpreendidos, querem ter é suas expectativas com algo cumpridas.
Ao contrário de personagens como Pato Donald ou Batman, Scott Pilgrim se estabeleceu entre a pequena parcela do imaginário popular que conhece seu nome com uma trama fixa intrinsecamente ligada a ele. Quem vai ter contato com a obra pela primeira vez através do filme, do jogo ou das HQs vai estranhar de mais uma versão da história onde ninguém em nenhum lugar avisou sequer que se tratava de um reboot ou um what if… e entenda, avisar que o anime é uma dessas coisas que mencionei não é dar spoiler e nem “estragar a surpresa”. Se você vai assistir algo sabendo minimamente o que espera, a surpresa estaria justamente em ver “o que irão fazer e como vão fazer”, porque conforme eu disse, nem sempre uma surpresa será puramente boa.
Para demonstrar por meio de exemplos, você pode chegar em um restaurante, pedir um bife e ao invés disso ser contemplado com o melhor prato de salmão do local. Pode ser que você se satisfaça? Sim, mas a frustração de não ter comido o bife que você tanto queria vai continuar com você, em maior ou menor grau. Você pode também adorar que sua família ou amigos resolvam te fazer uma festinha surpresa de aniversário, por terem lembrado de você, pela intenção de te agradar… mas se na festa usarem um sabor de bolo que eles não sabiam que você não gostava, um tema para lembrancinhas que seja de algo que você detesta ou mesmo não souberem que você nem sequer gosta de festas surpresa, a intenção de agradar pode até ter sido bem vinda, mas a atenção às preferências de quem se pretende agradar passou batido, e o erro já começa aí, pois o que os responsáveis entendem como um “marketing divertido” pode ser interpretado por muitos como pura e simples propaganda enganosa. Às vezes as pessoas só querem assistir aquilo que já conhecem e gostam de um novo jeito tendo aquela segurança de que vão se divertir com o que está por vir, mesmo sem maiores surpresas.
O outro grande problema especialmente no roteiro desse anime é que mesmo os personagens secundários ignorados na premissa pelo qual a obra ficou conhecida e aqui ganharam foco conseguem a façanha de ter subtramas ainda mais rasas e pouco convincentes do que a forma como são apresentados na história normal, que sequer é conhecida por ser um modelo de como trabalhar desenvolvimento de personagens. Para citar algumas, comecemos pela do líder da liga e principal vilão, Gideon Graves, que aqui é reduzido a um alívio cômico forçado após perder todo seu dinheiro e influência para Matthew Pattel em um confronto já no segundo episódio, e vai parar na casa de sua ex-colega de escola, Julie Powers, se tornando um típico nerd que usa os próprios hobbies para se refugiar de sua condição angustiante na maior parte do tempo em que aparece.
O próprio Matthew Pattel, que não passava de um inimigo de baixo escalão pouco relevante na história original, aqui aparece posteriormente como CEO da empresa controlada por Gideon após tê-lo vencido, mal tendo tempo de tela para soar crível em seu novo posto ao longo dos 8 episódios e ao final da série entrega tudo o que tomou de mão beijada ao rival por simplesmente sentir que “não serve para tal função”. O 3º ex-malvado Todd Ingrim, é reduzido aqui de um vegano com poderes tele cinéticos a um sujeito que em certo momento se descobriu homoafetivo ao dar uns amassos com o colega de quarto de Scott, Wallace, em meio às filmagens do filme sobre a vida de Scott Pilgrim e em certa parte do enredo fica choramingando em suas aparições por não ter o seu interesse amoroso correspondido, retomando os poderes para participar da luta final…porque sim, e isso sem esquecer de falar também na 4ª ex-malvada Roxy Richter, que mesmo após se resolver com Ramona sobre questões que levaram ao término após uma luta segue…integrando e aparecendo junto da tal liga por nenhum motivo especificado.
Veredito

Netflix / Science SARU / Divulgação
Scott Pilgrim – A Série é mais um produto de políticas de marketing predatórias e sobretudo pouco aceitáveis que vem se tornando tendência entre certas plataformas de streaming, que estão mais preocupadas com a forma como movimentam seus números de algoritmos do que com a própria satisfação do consumidor final de acordo com o que é entregue, mesmo que possa nem ser encarado como um produto tão ruim para muitos que resolvam dar uma chance à produção.
A regra para produções como a dessa animação não é se importar se o espectador segue assistindo à produção até o final por estar gostando do que está consumindo ou por simplesmente só ver até onde a coisa vai se desenrolar mesmo que de forma constrangedora, é simplesmente prender a atenção do espectador mesmo que isso sacrifique seu precioso tempo, energia elétrica e dinheiro.
Se você mesmo sabendo o que anime entrega deseja conferir por conta própria, para saber se pode gostar ou não, vá em frente e divirta-se sabendo de antemão como a coisa se desenrola a contragosto dos interesses iniciais dos principais responsáveis, mas se você quer ter acesso à história de Scott Pilgrim em formatos mais próximo da premissa original, dê preferência pelo filme em live-action ou pelo jogo, que seguem imbatíveis como adaptações ou parta até mesmo diretamente para os quadrinhos.
Scott Pilgrim – A Série está disponível na Netflix
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não remete necessariamente a posição do ANMTV*
*Manic Pixie Drem Girl: traduzida literalmente como “garota maníaca fada dos sonhos”, trata-se de um clichê comum de filmes de Hollywood onde personagens femininas aparentemente excêntricas e sem muita profundidade em suas abordagens chegam até a vida de um personagem principal masculino de uma trama e após causarem alguma desordem em sua percepção de fatos ou acontecimentos sobre o mundo e a vida ajudam ou motivam de alguma maneira o protagonista a alcançar seus objetivos e desenvolvimento para que a narrativa prossiga.
*Foreshadowing: artifício de roteiro onde o autor da história insinua eventos que ainda estão por vir através da presença gradual e sem maiores explicações de certos elementos em página ou em tela.
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