Análise: Sand Land: Boas intenções em meio a um deserto

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A obra Sand Land é, ao menos para mim, um daqueles casos que eu poderia chamar de “únicos” em anos acompanhando a indústria de animação e quadrinhos nipônicos. Concebido como um mero mangá one-shot de 14 capítulos publicados entre maio e agosto de 2000 na Shonen Jump, sob a autoria de um Akira Toriyama já exausto de mais de uma década dedicando-se a Dragon Ball, a obra só foi receber uma inimaginável atenção de produtoras japonesas apenas na década de 2020, quando “do nada” executivos aparentemente perceberam na aventura do trio composto pelos demônios Belzebub e Thief junto ao militar Rao todo um potencial para um projeto multimídia.

Dessa forma, hoje Sand Land tornou-se uma obra relativamente conhecida entre todo um novo público que já tinha conhecimento ao menos sobre o nome do agora falecido mangaká de outros carnavais, e ainda que não usufrua do mesmo nível de prestígio e fama de Dr. Slump e o já mencionado Dragon Ball, seus “irmãos mais velhos”, a obra conseguiu o impressionante êxito de receber entre os anos de 2023 e 2024 nada mais nada menos que um filme animado, uma adaptação do mesmo longa metragem para o formato de série de TV com alguns acréscimos de enredo e um game baseado em seu próprio universo.

Mas entre as diversas formas de atualmente se consumir Sand Land, será que a versão da estória feita para os jogos eletrônicos consegue ser uma boa opção para conhecer e desbravar as paisagens áridas ao lado do grupo de protagonistas ou acaba caindo no lugar comum de muitos jogos baseados em mangás e animes, que acabam entregando um produto derivado muito abaixo da proposta da obra original? É o que iremos descobrir a seguir:

EM BUSCA DO LAGO FANTASMA

Bandai Namco / ILCA / Divulgação

No enredo de Sand Land, em meio a um planeta Terra desertificado graças a intervenções humanas e catástrofes naturais, seres vivos precisam fazer o que está ao seu alcance para se adaptar à escassez de água, e entre tais grupos estão o dos humanos e dos demônios. Logo de início, somos apresentado ao jovem príncipe dos demônios Beelzebub, que aparece fazendo aquilo que até então fazia com alguma frequência: roubar junto aos súditos que compõem seu bando veículos de carga que atuam para o governo dos humanos, a fim de abastecer o próprio reino a que pertence.

Pouco após um desses assaltos, o local onde os demônios vivem logo é abordado pelo misterioso xerife Rao, que propõe uma parceria com os seres demoníacos para achar o Lago Fantasma, um tipo de oásis que muitos acreditam ser apenas um mito e o qual o policial acredita existir com base em algumas evidências aparentes que teria tido acesso. O militar convence Beelzebub e os demônios à empreitada após deixar claro que a aliança não faz parte do interesse geral do reino dos humanos e assim, Rao parte em uma aventura ao lado de Beelzebub e Thief, um demônio mais velho e amigo de confiança do garoto.

Bandai Namco / ILCA / Divulgação

Ao longo do percurso pela fonte de água lendária, o público vai poder descobrir qual a verdadeira identidade de Rao e inclusive quem é a enigmática Ann, uma personagem feminina introduzida tanto no jogo quanto na versão animada que até então não fazia parte da obra original. O game, tal qual como o anime e o mangá traz uma ambientação que remete parcialmente a filmes como os da franquia Mad Max e um ritmo narrativo que lembra um pouco o de road movies* que provavelmente em algum momento da vida jogadores assistiram em “sessões da tarde” pela TV durante um dia despreocupado qualquer, tudo isso somado à característica “fauna” de criaturas que habitam e enriquecem os ambientes por onde as criações de Akira Toriyama transitam, como dinossauros de visual peculiar e criaturas que mais parecem fusões de animais que conhecemos do mundo real sem qualquer ligação entre si.

Vale destacar que a grande novidade tanto no jogo quanto na versão animada trata-se da presença do território conhecido como Forest Land, onde acontecem eventos que fazem a estória se diferenciar do mangá em que foi originalmente baseada.

UM POUCO DE TUDO E MUITO DE NADA

Bandai Namco / ILCA / Divulgação

Em termos de jogabilidade, Sand Land pode se enquadrar em uma boa experiência introdutória para jogadores pouco acostumados a aventuras de mundo aberto e RPG, que seriam os gêneros onde o jogo mais poderia se encaixar. Há no game as possibilidades de evoluir uma “árvore de habilidades” para os personagens, explorar ambientes para coletar matérias primas úteis para a confecção de itens ou melhoria de equipamentos, personalização de veículos usados para se deslocar pelos mapas, combates contra inimigos que podem ser feitos tanto com o uso dos próprios personagens como através dos meios de transporte além de momentos onde o jogador terá que fazer uso de mecânicas tradicionais de jogos stealth tais como Metal Gear Solid e Hitman, uma junção de uma série de elementos que deram certo em outros jogos e deixam a experiência de jogo ampla de modo considerável e completa para aproveitar o consumo da obra através da mídia videogame.

Todavia, toda essa riqueza em diversidade de estilos de jogabilidade dentro da proposta fez com que a produção não tivesse lá um grande destaque em tudo aquilo que se propõe a oferecer, tal qual como uma pessoa que sabe conversar um pouco sobre tudo em comparação com alguém que é especialista e uma referência em um assunto. Nas partes de stealth, por exemplo, o jogador talvez não irá perceber que há uma punição que compromete de fato a não realização daquilo que o jogo impõe da forma como tem que ser feito. Em tais situações, ora pode-se jogar com Thief e com Belzeebub, mas esse é o único momento onde este primeiro ganha um pouco de foco.

O jogo acaba dando tanto holofote ao menino Belzeebub que tanto Thief quanto Rao ocupam na maior parte do tempo apenas o papel de personagens de suporte que fazem uso de técnicas passivas, especialmente nos confrontos mano a mano com adversários, a ponto inclusive do próprio papel de Rao ao longo do enredo parecer mais secundário do que de fato é, seja para quem já conhece a história ou para quem está se familiarizando através do jogo como mídia.

Bandai Namco / ILCA / Divulgação

Tais batalhas contra inimigos ou chefes usando Belzebub como personagem controlável estão inclusive longe de serem um primor ainda que sejam competentes, em especial por consistirem na maior parte do uso de golpes físicos simples em tempo real ao estilo beat’em up com um ou outro artifício com o pressionar e apertar de certos botões. Contudo, elas até chegam a serem um pouco mais divertidas e dinâmicas quando se faz uso dos recursos de locomoção, como um tanque de guerra que pode ser obtido logo nas primeiras horas de jogatina, permitindo inclusive com que já no embate contra um dos primeiros chefes o jogador possa fazer uso de objetos no cenário para articular um método para derrotá-lo sem passar por grandes dificuldades.

Infelizmente, a mesma tática que proporciona uma otimização no aproveitamento de combates e uma travessia de obstáculos mais segura acaba sendo o que faz com que o jogador logo esqueça qualquer atenção que possa dar ao aprimoramento de técnicas dos personagens para confrontos à curta distância, uma vez que a opção de usar os veículos acaba anulando essa possível prioridade oferecida pelo jogo em um primeiro momento.

Em relação a inimigos enfrentados pelo caminho que variam entre bandidos, soldados junto a seus aparatos e animais ferozes e dinossauros, é perceptível observar uma reutilização frequente de modelos apenas com leves alterações de cores que embora estejam dentro do que é esperado para certos mapas, não contribuem para a variedade que o jogo a princípio se propõe a oferecer, o mesmo dá para se dizer inclusive de vários cenários, como as bases militares que também não parecem convidativas a uma exploração mais minuciosa do jogador, o que torna inclusive alguns momentos durante missões um tanto quanto monótonos, ainda que chefes possam exigir um pouco mais de destreza para serem enfrentados e derrotados. A trilha sonora, embora se adeque à ambientação não chega a ser nada suficientemente memorável e quanto aos gráficos, eu diria que são talvez o ponto de maior destaque positivo, ao imprimirem bem no produto final o característico traço de Akira Toriyama com animações bem modeladas apesar de um pouco duras.

JOGO DE COMPARAÇÕES?

Bandai Namco / ILCA Divulgação

Talvez o maior problema a ser comentado sobre o jogo de Sand Land é perceber que as principais qualidades que ele entrega a quem resolver experimentá-lo trata-se de algo que ele simplesmente herdou ou do material de origem (mangá) ou mesmo de uma adaptação de seu enredo para outras mídias, que no caso é o anime.

E a transliteração de uma obra com um ritmo mais direto e objetivo, que leva poucas horas para ser consumida em outras mídias para um jogo que traz uma campanha que exige bem mais tempo para entregar a que veio, pode acabar passando a quem resolver conferir a obra pela mídia videogame a impressão de que ela talvez procrastina muito o que se propõe mesmo para uma narrativa que é puramente linear.

Acredito que dificilmente alguém que vai jogar Sand Land irá querer levar a estória da obra para um rumo completamente diferente daquilo que leu, viu ou mesmo a que ela se propõe desde o início sem o jogador ter lido ou visto nada, o que talvez pode levar quem está jogando mais a contemplar as interações entre os personagens e os momentos onde pode focar-se em dar atenção aos acontecimentos do nas horas onde efetivamente está interagindo com o cenário movendo objetos e controlando personagens.

Essa observação é importante pois pode levar o potencial consumidor a se perguntar se não seria menos oneroso em termos de tempo, energia e até mesmo dinheiro partir para o mangá ou o anime, já que ambos entregam a mesma experiência e de uma forma talvez bem mais ágil do que um game no formato de RPG onde as próprias side quests não irão trazer alterações significativas para o rumo onde a obra pretende conduzi-lo, tal qual como seria de um jogo com o design de Akira Toriyama e roteiro de algum outro nome consolidado da indústria de games com múltiplas possibilidades de final e condução de enredo (Chrono Trigger?).

VEREDITO

Bandai Namco / ILCA Divulgação

Se você estiver procurando um jogo de aventura em mundo aberto com toques de RPG e outros subgêneros sendo alguém pouco familiarizado com o estilo, vale a pena talvez adquirir Sand Land a um preço promocional. Se você for um grande fã do artista Akira Toriyama (como inclusive este que vos fala) e seu legado, o jogo de Sand Land pode com certeza ser uma peça de relativo valor para a coleção de materiais que queira consumir, colecionar e revisitar do finado mangaká cabendo você decidir ou não se o preço cobrado está dentro do que pode pagar.

Agora, se você for um jogador acostumado aos estilos de jogos que mencionei no parágrafo anterior, que conhece outras pérolas do gênero e espera talvez um game que traga algo além do traço de Akira Toriyama para gastar algumas horas do seu tempo, pode ser mais interessante partir para o mangá ou para o anime em outras horas livres que tenha, visto que dessa forma pode simplesmente aproveitar a obra por preços mais módicos ao invés de gastar horas de tempo em uma experiência mediana de jogabilidade.

Sand Land está disponível para as plataformas PC (via Steam) e para os consoles Playstation 4, Playstation 5 e Xbox Series S/X.

*Road movie: subgênero cinematográfico onde personagens partem em uma viagem com objetivos ou motivações variadas e nos quais as relações entre eles e o conflito central da estória se desenvolve ao longo do percurso.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não remete necessariamente a posição do ANMTV*