Análise – River City Saga: Three Kingdoms Next – O Romance das 3 Gangues

Reprodução.

Ainda que tenha jogado alguns jogos no estilo beat’em up durante minha infância e adolescência, River City é talvez uma das franquias do gênero que conheci mais tardiamente, embora essa esteja marcando presença no mundo dos videogames há quase 40 anos.

Conhecida como Kunio-kun no Japão, a série foi concebida através do Famicom (Nome pelo qual o NES é conhecido no Japão) no ano de 1986 com o jogo Nekketsu Kōha Kunio-kun (algo como Kunio-kun de Sangue Quente e Coração Duro, em uma tradução literal) que também recebeu versões para fliperamas e foi produzido pela Technos Japan e publicado pela Taito (Bust-A-Move/Puzzle Bobble), tanto na Terra do Sol Nascente quanto na América do Norte. Nesta última, o game foi lançado com o título de Renegade, pouquíssimo associável ao personagem que posteriormente viria a batizar a franquia em território nipônico.

Inspirado em experiências da adolescência de seu criador, Yoshihisa Kishimoto e no filme Operação Dragão, estrelado por Bruce Lee na década de 1970, o game trazia como proposta um enredo onde um jovem chamado Hiroshi, que constantemente era vítima de bullying por outros estudantes da escola onde estudava, um belo dia conhece Kunio – um novato que não suporta valentões e o qual rapidamente o garoto acaba fazendo amizade. Porém, em outro não tão belo dia Hiroshi é sequestrado e sobra para Kunio tirá-lo dessa situação enquanto cai na porrada com toda a sorte de adversários que ousarem se meter em sua empreitada.

Produzido pelo próprio Kishimoto com uma pequena equipe em um prazo de apenas 4 meses, o jogo destacou-se em sua jogabilidade por trazer um personagem controlável que se move em até 4 direções pelo cenário, inimigos que infringem dano no jogador com golpes variados, rolagem de tela conforme o personagem se desloca pelo cenário e a temática e estética urbana que viria a ser característica de outros inúmeros jogos consagrados que viriam a luz do dia em anos posteriores do mesmo segmento, como Double Dragon, que inclusive também é do mesmo criador.

Mas o que as brigas de gangue na qual Kunio e sua turma teriam em comum com um certo livro clássico da literatura chinesa? Seriam os personagens capazes de recontar de seu próprio jeito eventos descritos na narrativa em meio a uma jogabilidade no melhor estilo “briga de rua” em sua maior parte? É o que vamos descobrir a seguir analisando River City Saga – Three Kingdoms Next, o mais recente lançamento da franquia.

UMA ABORDAGEM POUCO CONVENCIONAL

Arc System Works / Divulgação

Antes de falarmos sobre a proposta do jogo mencionado, é importante situarmos um pouco possíveis leitores não familiarizados com a obra que o inspirou, assim como algumas das particularidades que a tornam tão especial. O Romance dos Três Reinos é uma obra escrita no século XIV por Luo Ghanzong, na China, e trata-se do primeiro livro escrito a seguir uma estrutura dividida em capítulos (em torno de 120), sendo também considerado um dos romances clássicos chineses mais importantes da literatura do país ao lado de obras como A Jornada Ao Oeste (que inspirou Dragon Ball e outros inúmeros animes) e À Margem da Água (inspiração principal da franquia de jogos Suikoden).

Arc System Works / Divulgação

Em seu enredo, que se passa entre o período que compreende o fim da Dinastia Han e a Era dos Três Reinos, os leitores são apresentados aos confrontos militares e políticos entre os reinos Wei, Shu e Wu, com descrições em sua narrativa de diversos combates épicos e complexos estratagemas militares que contaram com a participação de personagens reais históricos da antiga China, em uma apresentação dos eventos que mistura mito e realidade, trazendo subtramas que envolvem até mesmo triângulos amorosos. Tal história inclusive foi também a inspiração principal para uma outra franquia famosa dos videogames, Dynasty Warriors da Koei Tecmo.

E bem… o que tal base teria haver de fato com a proposta original de jogos como River City? Bom, a depender de como você deseje ou consiga enxergar, uma disputa de reinos por territórios pode ser talvez algo que não é tão diferente de disputas de gangues pela mesma coisa em contexto urbano, exceto talvez pela dimensão que o evento ganha ao se falar de reinos e pela possível sofisticação aristocrática dos envolvidos que lideram a contenda…

Mas particularmente, pode ser até que a combinação de idéias possa nem ter ido tão longe e os produtores apenas resolveram combinar uma idéia com a outra por de repente a coisa parecer divertida e um tanto quanto excêntrica, visto que River City não é talvez um jogo que se precise descascar muitas camadas para que se possa apreciá-lo.

E com base nisso, podemos ir direto à forma como o jogo apresenta o enredo, onde Kunio, no papel dessa vez do lendário Guan Yu, originalmente um líder chinês que deseja unificar o povo da China em meio ao caos, aqui se prontifica a espancar grupos de adversários muitas vezes sozinho para pacificar (do seu próprio jeito) a região em disputa pelos 3 monarcas, Wei, Shu e Wu, que ao longo da narrativa podem se enfrentar tanto no campo político e diplomático, quanto inclusive “saindo no braço” mesmo.

DESBRAVANDO OS 3 REINOS

A princípio, a interface do jogo é relativamente fácil de se familiarizar, com Kunio dispondo de alguns comandos básicos acionados por botões únicos que permitem socar, chutar ou apanhar rivais e também objetos para arremessá-los. Com a progressão de jogabilidade, novas técnicas, que variam entre golpes aéreos a pancadas de maior impacto podem ir sendo aprendidos através de uma árvore de habilidades contida em um dos menus, sendo possível inclusive customizar diferentes combinações de ataques para os mais diversos contextos de confronto que o seu personagem se encontrar.

Durante a aventura, é possível também situar-se do que precisa ser feito e que lugares é preciso ir em uma das opções dispostas no menu, além de se poder ajustar status de personagem, equipar armaduras, itens ou armas e até mesmo turbinar sua moto para atravessar facilmente rivais que tentem cercá-lo nos cenários. E sim, foi isso mesmo que você leu. Aqui uma motocicleta típica de um delinquente japonês pode ser usada como um recurso especial ofensivo, substituindo o papel então ocupado pelo cavalo “Lebre Vermelha” no livro original, uma ideia inusitada e que também reforça a atmosfera descontraída que o game apresenta desde seus minutos iniciais.

Arc System Works / Divulgação

Jogadores que optarem pela experiência single player podem por vezes se verem cercados de adversários pelo mapa precisando fazer uso não só de todos os recursos à sua disposição para se manterem de pé diante de uma horda de inimigos, como também de um certo “traquejo” que possivelmente apenas os mais acostumados com jogos do gênero podem vir a ter para não serem derrubados com frequência em meio a sopapos e pontapés. Ao se fazer uso de uma técnica especial que leva um tempo até ser carregada, uma pequena animação aparece na tela antes dela ser desferida contra os oponentes.

Os diálogos que aparecem durante a aventura são no geral leves, repletos de humor e referências, mas a própria ausência de tradução em português para o público brasileiro pode fazer com que o jogador simplesmente até mesmo só pule as partes onde os personagens interagem para poder sair descendo o sarrafo em rivais pelo caminho sem muito compromisso, o que pode fazer inclusive com que o mínimo de entendimento sobre a tal obra original de onde o jogo é baseado e suas sequências de acontecimento simplesmente “passem batido”.

Os cenários pelos quais seu personagem transita pouco variam, o que pode trazer a alguns jogadores a sensação de repetição tornando também a experiência monótona após algum tempo de jogatina. A parte de trilha sonora não chega a ser um elemento memorável mas cumpre bem a tarefa de trazer o jogador para uma ambientação de “China antiga” e de diversão. Já em relação a gráficos, eles não chegam a trazer um destaque positivo tal qual como visto em outros jogos da franquia, como River City Girls, mas não acho que pode-se dizer que são ruins ou feios, diria que são razoáveis assim como que estão dentro do padrão de outros produtos da série.

Arc System Works / Divulgação

BRIGA DE RUA E LITERATURA CLÁSSICA: UMA MISTURA QUE NÃO “DÁ JOGO”?

Conforme foi comentado sobre a acentuada discrepância de propostas, é preciso também falar como tais diferenças por vezes prejudicam um pouco o ritmo do jogo para o básico que se espera dele, levando a dúvidas se elas realmente funcionam como deveriam juntas.

Digo porque em geral, quando se fala de jogos ao estilo beat’em up, ninguém possivelmente espera muitos e longos diálogos típicos de RPGs (ou JRPGs) ou visual novels, pois o jogador quer mesmo é bater em tudo que aparecer no caminho e é justamente essa última parte que por vezes é prejudicada pelas inúmeras caixas de textos do jogo que aparecem e, embora levem a história a andar, não chegam a ser de fato tão importantes quanto o jogo pode querer fazer parecer.

Arc System Works / Divulgação

É como se o jogo quisesse cumprir um papel quase que “pedagógico” de apresentar um clássico da literatura a quem só está familiarizado com uma versão da linguagem de jogos que é talvez uma das mais simplistas e não conseguisse performar de forma próxima da perfeição em nenhum dos dois papéis que tenta exercer. Vale ainda destacar que esse jogo é uma sequência, o que pode fazer com que quem comece por ele ao invés do antecessor se veja também um pouco mais “perdido” ao tentar se situar baseando-se puramente nos diálogos.

Infelizmente, ao contrário do jogo anterior ao qual Three Kingdoms Next dá sequência, não há aqui um modo de jogo que o transforma em um beat’em up puro e simples omitindo diálogos e cenas, o que acaba prejudicando bastante a principal mecânica que o jogo se propõe a trazer, uma decisão ruim por parte da equipe responsável que acaba limitando a forma como o produto final pode ser consumido.

VEREDITO

Arc System Works / Divulgação

Se você já é fã de longa data de River City/Kunio-kun, provavelmente pode vir a se divertir muito mais com a proposta que este jogo pode trazer, ainda mais se já tiver gostado do jogo que o antecede que foi quem apresentou tal proposta como realmente inovadora.

Porém, se você está prestes a ter o seu primeiro contato com a franquia pode ser mais interessante voltar suas atenções para outros jogos que estejam mais relacionados à proposta original da franquia e que não tragam tanta “firula” para sua jogabilidade, tais como River City: Rival Showdown, que traz consigo uma releitura modernizada com toques retrôs do primeiro jogo da série ou mesmo o spin-off River City Girls, que já teve 2 sequências e que também tem cumprido bem o papel de “porta de entrada” para a franquia.

River City Saga – Three Kingdoms Next está disponível para as plataformas Nintendo Switch, Playstation 4 e PC (via Steam).

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não remete necessariamente a posição do ANMTV*