Análise: Kyousougiga – A Cidade em uma pintura

Divulgação. © Toei Animation

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Nascida a partir de uma pintura, a Capital Espelhada, Kyoto é, governada pelo Conselho dos Três. A ela, chegam a garota Koto, portando o gigantesco martelo Aratama, e seus dois companheiros espirituais A e Un. Seu objetivo: encontrar uma coelha negra.

Kyousougiga é uma animação de 2013 do estúdio Toei Animation, com 10 episódios.

A Boath Beneath a Sunny Sky

Divulgação. © Toei Animation

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Num País das maravilhas eles vivem, / Sonhando conforme os dias passam, / Sonhando conforme o verão acaba. / Eternamente navegando corrente abaixo – / Se apegando a um brilho dourado – / Vida, o que é se não um sonho?

Estas são as últimas linhas do poema de Lewis Carroll “A boat beneath a sunny sky”, mais conhecido pelos seus livros “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho e o que Ela Encontrou Lá”. Linhas estas diversas vezes repetidas ao longo de Kyousougiga.

E não por acaso. “A boath beneath a sunny sky” é um poema sobre a dor da separação, conforme Carroll se dá conta de que Alice, sua principal inspiração, agora cresceu, e não mais ouvirá suas histórias. Ainda há, claro, crianças para ouvi-las, mas este trecho final bem mostra sua visão destas. Eventualmente, todos crescem. Eventualmente, todos partem.

Kyousougiga é uma história sobre separação, reencontro, e crescimento. “A história de uma família em particular, uma história de amor e renascimento”, nos lembra o narrador, ao começo de cada episódio. História esta que começa “quando a linha entre homens e deuses era tênue”.

Muito se pode criticar a Toei Animation, e em vista de algumas de suas produções recentes ela definitivamente merece toda sorte de críticas. Mas Kyousougiga é a prova de que boa arte pode surgir de absolutamente qualquer lugar. Porque sim: Kyousougiga é bom, isso para dizer o mínimo.

A princípio apenas um ONA (original net animation), lançado em 2011 no Nico Nico Douga e no Youtube, em 2012, temos ainda mais 5 novos episódios, também para a internet e de apenas alguns minutos. Finalmente em 2013 surge o anime para televisão, onde finalmente a história pode ser contada desde o seu princípio até o final apropriado, em 10 episódios de tamanho normal.

Com um ritmo frenético que facilmente prende a atenção do espectador, personagens carismáticos e bem desenvolvidos, um estilo de arte único, uma animação fluida e uma trilha sonora fenomenal, Kyousougiga definitivamente merece mais atenção do que recebeu originalmente. Então, demos essa merecida atenção.

A história de uma família

Divulgação. © Toei Animation

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É bem complicado tentar fazer uma sinopse completa para este anime, dado que mesmo a sua premissa vai exigir alguns parágrafos para ficar clara. Mas vamos lá, tentarei ser sucinto:

A história começa no Japão antigo, com o monge Myoue. Vivendo afastado da sociedade, Myoue possui o poder de dar vida a qualquer desenho que faz, e por isso causa medo nas pessoas. Um destes desenhos foi koto, uma coelha negra, que se apaixonou por Myoue, mas sentia que não podia se expressar naquela forma.

Tendo pena da coelha, uma bodhisattva (alguém que atingiu o estado de Buda, a Iluminação, mas decidiu permanecer no mundo para guiar aos demais) lhe faz uma proposta: lhe emprestaria seu corpo, desde que Koto o devolvesse após um tempo. Koto concorda, e logo após conseguir o corpo ela se declara para Myoue.

Ambos vivem juntos por algum tempo, e mesmo adotam uma criança: Yakushimaru. Para que ele não ficasse sozinho, Myoue decide lhe desenhar dois irmãos: o Buda Kurama e a demônio Yase. Por algum tempo, a família vive bem, mas eventualmente problemas com a cidade próxima faz com que eles decidam se mudar: para dentro de uma das pinturas de Myoue.

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Assim surge a Capital Espelhada, Kyoto. Porém, nem tudo são flores: Koto vem tendo terríveis sonhos com o fim daquele mundo, e ela acredita que seja por não ter devolvido o corpo à bodhisattva ainda. Assim, ela e Myoue decidem deixar a cidade, prometendo às crianças que voltariam um dia. Antes de partir, Myoue entrega seu nome e posto à Yakushimaru, que se torna então o monge Myoue da Capital Espelhada.

Anos se passam e nada de ambos voltarem. As crianças já cresceram, e agora governam a cidade como o Conselho dos Três. Mas eis então que uma tempestade de raios atinge a cidade, e no templo central, o ponto de entrada e saída daquele mundo, desce uma luz. Surge ali uma garotinha: Koto, que veio à cidade atrás de uma coelha negra.

História e personagens

Divulgação. © Toei Animation

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Estruturalmente, é relativamente bem desenvolvido em duas metades. A primeira é usada para construção de basicamente tudo. Temos a apresentação dos personagens, suas personalidades e relações uns com os outros; alguns elementos do passado de cada um; algumas informações sobre aquele mundo e o mundo real, de onde veio a menina Koto; e claro, temos a sensação de que uma história maior está sendo desenvolvida ao fundo.

O final do quinto episódio é o que coloca essa história em movimento. E com o sexto entramos na segunda metade, quando é hora de começarem as explicações. Alguns twists o anime já vinha construindo desde o primeiro episódio, enquanto outros são feitos para serem uma enorme surpresa. E claro, é o momento de efetivamente desenvolver os personagens, trabalhando em cima das personalidades pré-estabelecidas.

Por conta dessa estrutura, a princípio, Kyousougiga parece imensamente confuso, especialmente se você começar pelo episódio 0 (que nada mais é que o ONA original com algumas pequenas modificações). Mas aquele que seguir até o final provavelmente o terminará sem qualquer questionamento pendente.

Divulgação. © Toei Animation

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Num geral, Kyousougiga é o tipo de animação que faz tudo certo. Talvez a única crítica maior que se possa fazer é que alguns personagens são claramente deixados pouco mais de lado. O foco narrativo está na menina Koto, e o foco do desenvolvimento está em Yakushimaru (agora chamado Myoue). Demais personagens, como o antigo monge Myoue, também recebem um bom desenvolvimento, mas outros são um tanto quanto apagados, bons exemplos sendo Kurama e Yase. A e Un, os familiares espirituais da garota Koto, então não recebem praticamente nenhum desenvolvimento.

Ainda assim, considerando que a obra tem apenas 10 episódios diria que ela atinge muito mais do que seria esperado. E por menos que certos personagens tenham sido desenvolvidos, todos são extremamente divertidos e carismáticos.

Obra intertextual

Divulgação. © Toei Animation

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Mas talvez o aspecto mais interessante – e instigante – do anime seja o seu caráter intertextual; repleto de referências, que abarcam sobretudo três conjuntos de obras em especial:

O primeiro deles já temos logo no nome. Kyousougiga é uma referência aos Choujuu Giga, uma série de painéis retratando desenhos de animais antropomorfizados – em especial coelhos, macacos e sapos – que muitos estudiosos consideram como sendo o primeiro mangá da história. O próprio episódio 0 abre com algumas imagens destes pergaminhos, e ao longo da obra o espectador pode notar como o trio coelho-macaco-sapo aparece com bastante frequência.

A segunda grande referência é, como eu coloquei nos primeiros parágrafos, a obra de Lewis Carroll. A Capital Espelhada é uma clara referência ao País das Maravilhas, e Koto chegando a ela conforme buscava uma coelha é uma óbvia referência à “Alice no País das Maravilhas”. Já o fato de que o monge Myoue original leva a família para lá abrindo um portal com seu espelho, no primeiro episódio, é uma referência à “Alice Através do Espelho”. E claro, trechos do poema de Carroll anteriormente mencionado – que, inclusive, aparece justamente em “Alice Através do Espelho” – permeiam toda a história, sendo citados duas ou três vezes pelo menos.

Divulgação. © Toei Animation

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Já a última grande referência é a religião, mitologia e folclore japonês. A figura do bodhisattva é típica do budismo, que inclusive diz que um estes são capazes de criar os chamados “Reinos Buda”, locais nos quais podem ensinar o caminho para a Iluminação (muito provavelmente Koto, a coelha, foi originalmente chamada para um Reino Buda por aquela bodhisattva). Outros elementos mais simbólicos e folclóricos também aparecem em abundância em Kyousougiga

Claro, o que a obra quer dizer com estas referências vai de cada um. Os paralelos com “Alice no País das Maravilhas” possivelmente referenciam o tema do crescimento, de deixar a infância para entrar na vida adulta, algo que quase todos os personagens acabam tendo de aprender, ainda que em níveis diferentes. Mas se ficar opinando sobre o significado de cada referência este texto vai ficar enorme, então deixo que o leitor decida por si mesmo o significado de cada um.

Considerações finais

Divulgação. © Toei Animation

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Dizer que este anime é bom seria ainda dizer pouco. Como disse, é o tipo de obra que faz tudo certo. Os personagens são divertidos e cativantes, além de termos alguns muito bem desenvolvidos. A história, ainda que confusa a princípio, é muito bem fechada e amarrada, e lida muitíssimo bem com os temas de família, separação e crescimento. A animação é ótima, e uma enorme surpresa vindo da Toei Animation. A arte, então, é belíssima, e não são poucos os quadros do anime que dá vontade de pendurar em uma parede.

Finalmente, a trilha sonora é um verdadeiro show a parte, e chamo especial atenção para uma insert song chamada “The Secret Of My Heart”, possivelmente uma de suas músicas mais bonitas.

Ponto é: se ainda não conhece Kyousougiga, considere dar uma chance. Ele definitivamente vale o seu tempo.