ANMTV Especial: Dia do Quadrinho Nacional

Reprodução

De acordo com dados de uma pesquisa feita pelo Instituto Pró-Livro em setembro de 2020, o Brasil conta com uma população de 52% de pessoas habituadas com a leitura (algo em torno de 100,1 milhões de indivíduos) e teve uma redução de 4,6 milhões de leitores em um intervalo de 4 anos. Entretanto, apesar desse desanimador e desafiador cenário, existe um mercado artístico composto por criadores dedicados ao que já se conhece por a “nona arte” no Brasil, que segue se esforçando para trazer conteúdos interessantes e relevantes de modo a despertar ou resgatar o interesse de todo esse contingente populacional pelo prazer que a leitura proporciona.

E hoje, a fim de homenagear esses artistas e profissionais, o ANMTV traz no Dia do Quadrinho Nacional um pouco sobre a contribuição de certas HQs para o cenário brasileiro de quadrinhos e para nossa própria formação como leitores e escritores, assim como trazer àqueles que nos acompanham indicações de boas HQs nacionais que permitam a todos que estiverem tirando alguns minutos de seu tempo lendo este artigo para descobrirem que quadrinhos nacionais são um universo muito além dos tradicionais nomes que vêm à mente como Turma da Mônica, de Maurício de Sousa ou o Menino Maluquinho, de Ziraldo. Não deixamos obviamente de ressaltar a importância das produções mencionadas, uma vez que elas só se tornaram tão conhecidas mesmo entre quem já deixou de ter contato com a mídia graças a seu impacto cultural significativo, mas entendemos que é preciso ir além do óbvio para demonstrar a capacidade única de brasileiros em criarem boas histórias e do quanto elas merecem mais reconhecimento do que já conquistaram.


Edmar Filho

MUITO ALÉM DOS CLÁSSICOS DE MAURÍCIO

MSP Produções / Panini Comics / Divulgação

Depois de ter contato com algumas histórias do personagem Astronauta de Maurício de Sousa, percebia e imaginava que ele seria o mais próximo de um super herói nacional entre a extensa galeria de personagens do famoso quadrinista, um “Buzz Lightyear tupiniquim” por assim dizer. E por indicação de um amigo, adquiri aquela que se propunha a ser uma releitura mais séria do personagem, sem sequer saber que a mesma era a primeira de uma coleção de novas versões dos demais personagens de Maurício assim como de uma posterior sequência de 5 histórias do explorador do universo (seguida por Singularidade, Assimetria, Entropia, Parallax e uma com título a ser definido), cuja última será lançada neste ano de 2022. Pra minha sorte, a surpresa não poderia ter sido mais grata.

Roteirizada por Danilo Beyruth e contando com arte de Cris Peter, Astronauta – Magnetar traz o aventureiro espacial durante uma de suas missões para estudar e presenciar de perto um magnetar, uma estrela de neutrôns com um forte campo magnético. Por conta de um erro cometido durante sua atividade, Astronauta acaba ficando com sua nave presa próximo ao local, de forma que tendo apenas que sobreviver enquanto aguarda o socorro, acaba tendo uma experiência parecida com a de um náufrago, tendo que lidar com seus próprios demônios internos após inúmeros dias à deriva e perdendo as esperanças de ser resgatado.

Astronauta – Magnetar é uma história de ficção científica sobre solidão, e consequências de escolhas de vida que explora bem o background do personagem Astronauta Pereira (sim, Astronauta é o nome do próprio herói) ao escolher como meio de vida aventurar-se pelo espaço infinito abrindo mão de sua vida na Terra e da proximidade entre seus familiares, amigos e a mulher que amava e se relacionava. Mesmo ao trazer uma leitura carregada de angústia e autoquestionamento, foi a primeira produção a mostrar que é possível “fazer mais” com a galeria de personagens criados por Maurício, e que vão além do que tivemos contato em nossas infâncias, proporcionando histórias como Turma da Mônica – Laços e Lições que posteriormente enriqueceram também o cinema nacional, merecendo portanto um lugar especial nessa lista de indicações.

UMA BOA IDEIA NÃO TÃO BEM SUCEDIDA

Cristal Editora / ESA / Divulgação

O Pequeno Ninja – Mangá foi uma publicação que tive acesso aos dois primeiros exemplares em um período onde assim como muitos estava deixando de lado os gibis da Turma da Mônica e tendo meus primeiros contatos com os quadrinhos japoneses. Anos depois tive acesso a todas as edições por vias digitais e pude concluir a história que li na pré-adolescência e ainda tinha alguma boa lembrança. Foi nesse momento em que descobri que o gibi em estilo mangá o qual tive acesso nada mais era do que uma releitura “ultimate” de um personagem antigo. Nada revolucionário ou marcante, mas não menos divertido para ao menos passar o tempo.

Idealizado por Tony Fernandes (roteiro) e Wanderley Felipe (desenhos), O Pequeno Ninja foi um herói criado no auge da “ninjamania” do fim dos anos 80 e início dos anos 90, e trazia ao público da época as histórias de um garoto chamado Eugênio, filho do líder de um poderoso clã ninja que atuava secretamente em aventuras com a identidade de “Pequeno Ninja”, usando um uniforme azul e todo tipo de aparatos ninja para combater vilões com a ajuda de seu cão ninja Shaken.

Por conta do pouco sucesso frente a outros gibis concorrentes da época e de brigas envolvendo os direitos autorais do personagem, o shinobi brazuca ficou por anos na obscuridade até ter uma segunda chance no início dos anos 2000, quando recebeu uma nova versão. Com produção dessa vez pela Cristal Editora e pela Escola Studio de Artes (ESA) contendo um arco único fechado em 6 edições, a versão “mangá” de O Pequeno Ninja trazia traços que emulavam o estilo de Akira Toriyama e uma narrativa com elementos mais sérios e típicos de mangás shonen pegando carona no sucesso de Dragon Ball, que no período era sinônimo de “anime de pancadaria e ação de sucesso”. Não se sabe se a proposta teve o êxito esperado, apenas que o personagem retornou novamente ao anonimato e só viu de novo a luz do dia ao ser ressuscitado pela Editora Online com o resgate de suas características clássicas em 2008, mas de novo sem tornar-se um fenômeno entre crianças ou mesmo entre o público que outrora cativou, ganhando mais um hiato algum tempo depois.

É possível talvez que o herói tivesse mais sorte em outras mídias que vem ganhando mais força que os quadrinhos entre produtores no Brasil, como jogos eletrônicos ou animações, tendo sua mídia de origem como um elemento multimídia secundário que possa expandir sua proposta, além também de acréscimos que o dessem mais personalidade, transformando-o em um herói mais único e menos em um rascunho de outros já existentes ou do que o imaginário popular entende como ninja.

No entanto, há de se ressaltar a boa percepção que os envolvidos no projeto tiveram ao perceber a migração de leitores brasileiros de nomes consolidados do quadrinho nacional para um novo nicho editorial em ascensão, e tentarem readaptar uma antiga produção a esse então novo formato anos antes de isso ser percebido pela própria MSP Produções, culminando na criação de Turma da Mônica – Jovem muitos anos depois. Todavia, uma obra contemporânea dessa adaptação ao estilo dos mangás conseguiu ser mais bem sucedida cativando o público e sendo mais lembrada ao se falar de “mangás nacionais” como será visto a seguir.

A GRANDE AVENTURA À MODA JAPONESA

Jambô Editora / Divulgação

No início dos anos 2000, os mangás começavam a se consolidar em território brasileiro graças à Editora Conrad, que viveu seu período de maior auge ao apostar nas versões quadrinizadas de animes de peso da época como Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco. Porém, entre algumas tentativas do mercado editorial nacional de surfar na nova onda, poucos compreendiam o que em parte fazia os mangás serem o sucesso que eram entre o público, acreditando que para uma obra ser enquadrada na categoria bastava um traço ao “estilo japonês” e uma aposta em sequências de ação inventivas com direito a violência e super poderes. E foi ao enxergar peculiaridades não óbvias do formato que Holy Avenger se destacou entre os fãs de animes e mangás brasileiros.

Embora ouvisse falar bastante da série de antigas revistas especializadas, levei anos para ler em formato integral e descobrir porque a série escrita por Marcelo Cassaro e desenhada pela artista Érica Awano era tão aclamada e lembrada por quem a viu nascer e tomar forma nas páginas da antiga revista sobre RPGs Dragão Brasil, assim como sua importância ao se discutir sobre quadrinhos nacionais.

Trazendo uma aventura que se passava no universo de fantasia medieval da franquia de RPG brasileira Tormenta, em Holy Avenger o público é apresentado a Lisandra, uma garota criada ao lado de animais em uma ilha isolada que começa a ter sonhos com um estranho guerreiro conhecido como “Paladino”, que havia sido derrotado no passado por forças maléficas, só podendo ser ressuscitado com seu poder total através da reunião dos 20 rubis da virtude espalhados pelo mundo de Arton, para livrá-lo de uma terrível ameaça ao destino de todas as raças e seres vivos. Durante a jornada, a jovem druida da floresta contará com a ajuda de importantes aliados como a bela elfa Niele, o atrapalhado aspirante a ladino Sandro Galtran e o réptil anão guerreiro Tork, em uma aventura que se estendeu por 40 edições em sua primeira publicação e que atualmente pode ser relida em 4 edições luxuosas pela Editora Jambô.

Embora críticas apontem o excesso de fanservice e alguns problemas de roteiro, a série teve o mérito de receber reconhecimento pelo Ministério da Cultura do Japão como um legítimo “mangá estrangeiro”, contrariando uma parcela dos fãs que defende a ideia de que tal nomenclatura só pode ser dada a quadrinhos produzidos em território nipônico, e graças à conquista abriu possibilidades para que outros produtores de quadrinhos do Brasil pudessem sonhar com a possibilidade de criar séries ao estilo japonês, obtendo similar reconhecimento não só de fãs no Brasil como no exterior. O mangá nacional Tools Challenge, de Max Andrade, provou-se como uma dessas produções que há alguns anos se destacou como um dos mais bem sucedidos projetos posteriores a cair no gosto daqueles que tinham certo interesse por mais “mangás nacionais”, apesar de seus próprios percalços editoriais.

SUPER HERÓIS COM BRASILIDADE

Editora Draco / Divulgação

Ainda que com representantes pouco conhecidos entre o grande público, a premissa de super heróis brasileiros data da década de 60, onde personagens como o JudocaRaio Negro Capitão 7 fizeram suas primeiras aparições, muito antes de gigantes dos quadrinhos como Marvel e DC identificarem uma aparente demanda de nosso povo por representação que ocasionaria na criação de personagens como Mancha Solar, Magma, Fogo Verde e mais recentemente de uma versão alternativa da própria Mulher-Maravilha.

Porém, não é a falta de super heróis com décadas de consolidação que suprimiu o potencial de quadrinistas nacionais de empregarem esforços para criar histórias com proposta a altura de grandes clássicos das majors norte-americanas ou novos personagens que representassem algo comum da realidade brasileira junto a boas histórias. Enquanto anti-heróis como o Doutrinador surgiram da angústia de cidadãos com a corrupção que assola a política nacional e outras como Mayara & Annabelle foram concebidas da idéia de histórias misturando temas sobrenaturais e ação protagonizadas por funcionárias públicas concursadas, Quem Matou João Ninguém? é uma narrativa que traz uma história de super herói para um ambiente onde provavelmente poucos arautos da justiça de outros países conseguiriam trazer às pessoas alento ou esperança: uma favela brasileira.

Com roteiros assinados por Zé Wellington e Wagner Nogueira e traços creditados a uma equipe formada por Rob Lean, Wagner de Sousa, Cloves Rodrigues, Alex Lei e Ed Silva, o encadernado tem início com um aspirante a quadrinista chamado João, que ao ser morto por o que a princípio parece ser uma bala perdida tem pela própria Morte uma oportunidade de retornar à vida com a identidade secreta de um herói nomeado de “Sujeito Homem”, para desvendar a causa de seu próprio assassinato. Contada através de forma não linear, a narrativa alterna cenas de flash back mostrando a relação do protagonista com seus amigos de infância Sandro, Nina e Roberto na favela de Santa Edvirges, com eventos no presente, que mostram os rumos que cada um deles seguiram ao tornarem-se adultos feitos vivendo no mesmo ambiente periférico onde cresceram em uma trama misturando criminalidade, amizade, vingança e traição, que seria uma mescla de elementos de filmes como Cidade de Deus, Efeito Borboleta e Kick-Ass – Quebrando Tudo.

Entre todas as obras mencionadas até agora, Quem Matou João Ninguém foi a primeira da qual pude adquirir um exemplar em mãos de um dos próprios envolvidos no projeto, e que é um de meus conterrâneos de estado. Por conta isso, guardo a edição adquirida com carinho em minha coleção. Mais do que uma HQ que trazia uma abordagem diferenciada para a temática super heróica, essa foi uma história importante para este que vos escreve ao demonstrar que a mídia HQ é tão democrática naquilo que se propõe, que para  novos artistas competentes serem descobertos no território de dimensões continentais deste país, muitos não são sequer obrigados a irem para o eixo Rio-São Paulo para conseguirem o mínimo de reconhecimento, e apesar de alguns problemas na forma como a história é contada e decisões estranhas de roteiro, Quem Matou João Ninguém é uma produção indicada para todos aqueles desejosos de saber como seria uma história de super heróis brasileira combinada com a seriedade do formato conhecido como graphic novel, que consagrou grandes quadrinhos não só de super heróis famosos como que funcionam como histórias independentes.


Lindemberg Santos

AFRICANIDADES NOS QUADRINHOS

Catarse / Divulgação

As histórias em quadrinhos nacionais também tem um espaço dedicado às africanidades. Esse espaço é maravilhosamente ocupado pela arte de Hugo Canuto e uma de suas obras que se destacaram foi Contos dos Orixás que desde 2019 cativa leitores do Brasil e do mundo.

A obra é um projeto que tem um carinho específico para professores e no meu caso, no ensino das Artes Visuais não é diferente, pois permitiu colaborar com a inserção desse conhecimento em sala de aula até mesmo de forma interdisciplinar com filosofia, sociologia e história por exemplo.

Essa HQ, finalista em 2020 do Prêmio Jabuti – Histórias em Quadrinhos, também é o resultado do sucesso de experimentos de releitura de heróis Marvel na forma desses Orixás que a protagonizam. Tanto que o próprio Xangô aparece em um pôster na parede de uma cena de Space Jam: Um Novo Legado.

E como tudo que dá certo tem continuidade, Contos dos Orixás 2 – O Rei do Fogo está com campanha aberta até o dia 25 de março sendo uma trilogia que remonta o passado contado na edição anterior, onde Exú, Ogum, Oxóssi, Oxum, Iansã e Xangô, bem como Yemanjá, Oxalá e tantos outros apresentarão os seus poderes.
Bem que poderia aparecer os Boiadeiros: guardiães e protetores da Lei Maior não é Hugo?


Williams Gomes

ASSUNTOS DA VIDA REAL

Editora Lagougoutte / Divulgação

É bem verdade que obra da carioca e radicada em Curitiba, Bianca Pinheiro pode estar longe de ser uma produção brasileira revolucionária na história nacional das HQ’s, mas como sua própria introdução já diz: “Alho-Poró é um quadrinho que se lê frio”, e neste caso, acredite quando digo que a sutileza da autora em apresentar sua trama e estabelecer um clima tenso, ainda que delicado, é tão eficaz e preciso quanto uma bala disparada.

A história das três amigas que, a princípio, se reúnem para a produção de uma quiche é repleta de quadros de diálogos simples e outros sem nenhum qualquer, mas que ainda assim me fizeram precisar reler a obra para notar detalhes importantes para a história. Seu plot apesar de ser ligeiramente previsível, consegue ser potencializado com o decorrer dos diálogos que surgem nas páginas finais, envolvendo assim os leitores – e principalmente aqueles que já lidaram com experiencias de perda e frustração, semelhante à das protagonistas. Alho-Poró é um quadrinho que, em sua essência, aborda assuntos que vão além dos limites brasileiros e seus habitantes, é realista, impactante e vale cada página lida.


MENÇÃO HONROSA

Editora Louvor / Editora Vida / Divulgação

Oriundo de uma tentativa de fazer um gibi voltada para crianças cristãs evangélicas brasileiras em 1992 sob a autoria do pastor Eduardo Samuel da Silva (roteiro) e Jairo Alves da Silva (arte), Dudão (ou “Turma do Dudão”) foi uma HQ que em 2020 alcançou um singular e inesperado sucesso na internet graças a pessoas que redescobriram as histórias do personagem e enxergaram em sua narrativa e estética bizarras e humor “politicamente incorreto” para os atuais padrões, uma fonte inesgotável de memes que viralizaram na internet e nas redes sociais, recebendo inclusive dublagens de suas histórias, reforçando a ideia de que “dublagens são capazes e eficientes muitas vezes para difundir produtos a todo um novo público”.

Baseado em histórias de infância do seu criador, a série virou uma espécie de “South Park Made In Brasil” com orçamento ainda mais baixo e hoje é parte dos homenageados do Dia do Quadrinho Nacional por de alguma maneira funcionar na função primordial de qualquer quadrinho, que é a de divertir e entreter, ainda que fora daquilo que inicialmente foi proposto.

*Edição sob responsabilidade de seus autores

*Supervisão geral Matheus Sousa