Análise: Shin Megami Tensei V: Vengeance — divirta-se longe de seus parentes religiosos
Shin Megami Tensei (algo como “Verdadeira (ou ‘Nova’) Reencarnação da Deusa” em uma tradução literal) é uma franquia de jogos que até a publicação dessa review eu admito que só conhecia por nome, nunca tendo chegado sequer a ter um interesse genuíno em compreender do que se tratava.
Tudo que eu (pouco) sabia até então sobre essa série de jogos com nome japonês aparentemente estranho (mesmo pra mim, que já sou fã de cultura pop japonesa de longa data), era que foi através dela que uma outra franquia, chamada Persona, teria se originado como spin-off, tendo inclusive ficado mais conhecida que sua “irmã mais velha”. Essa última, inclusive me é mais familiar, seja pelo contato com a versão do jogo Persona 3 para PSP ou graças ao anime Persona 4 – The Animation, quando este ia ao ar na temporada de outono do hoje distante ano de 2011.
Lembro que cheguei a baixar e instalar Shin Megami Tensei IV: Apocalypse no meu 3DS após ver o jogo dessa série em uma das inúmeras listas que circulam pela internet de “melhores”, mas nunca sequer cheguei a jogá-lo por acabar dando preferência a outros que disputavam minha preferência e meu parco tempo livre, mas bem… ele ainda está lá, e a questão agora é saber se depois de ser apresentado a Shin Megami Tensei V: Vengeance eu, ou até mesmo você, irá querer reembarcar em antigas ou novas aventuras.
ACORDANDO EM UM MUNDO PARALELO… E DEMONÍACO
No enredo, o jovem protagonista (que pode ter o nome decidido pelo próprio jogador), recém transferido para uma nova escola, ao sair de seu expediente escolar depois de interagir com alguns colegas, acaba tendo que fazer um desvio do caminho que tomava em razão de mais um dos inúmeros crimes misteriosos e brutais que tem ocorrido em Tóquio.
Após ser vítima de um acidente em um túnel, o garoto se percebe em uma versão alternativa e pós-apocalíptica da metrópole nipônica chamada de Da’at e para garantir sua sobrevivência, acaba tendo que aceitar a oferta proposta por um ser de aparência humanóide chamado Aogami para fundir-se com ele e assim tornar-se Nahobino: um indivíduo que combina conhecimentos e habilidades humanas com poderes místicos herdados da divindade sobrenatural.
No decorrer dos eventos que vão sendo apresentados em tela, o jogador vai se familiarizando com a narrativa, que diz que um dia Lúcifer apareceu em meio aos céus declarando que derrotou Deus e após o acontecimento, toda a sorte de criaturas mitológicas que vão desde anjos remanescentes até entidades adoradas como deuses em culturas diversas e até então rebaixados a “demônios” por adoradores do Deus cristão poderiam disputar o posto anteriormente consolidado por ele, e assim impor seus próprios desejos e vontades ao mundo conforme quisessem.
É em meio a tal contexto que a aventura de Nahobino irá se desenvolver, podendo o jogador recrutar vários dos seres que aparecem mediante seu caminho inicialmente como inimigos para formar seu próprio grupo e progredir dentro da estória também encontrando outros indivíduos independentes, os quais os objetivos possam vir a serem complementados com o do personagem principal, sendo alguns deles inclusive humanos, que fazem uso de alguns tipos de técnicas especiais para sobreviver ao ambiente hostil que o outrora mundo humano se tornou.
Através dessa abordagem, Megaten (apelido pelo qual a série ficou conhecida entre os japoneses) aproveita também para trazer alguns questionamentos filosóficos e transcendentais em seus diálogos que tornam o desenrolar da estória interessante, de modo que as respostas para as perguntas que o jogo propõe fiquem em aberto para que o próprio jogador responda por si na forma de decisões a serem escolhidas através de diálogos.
Diferente da versão do jogo lançada em 2021 com exclusividade para o Nintendo Switch apenas com o título Shin Megami Tensei V, que trazia uma progressão narrativa única, Vengeance oferece a possibilidade de duas rotas para a evolução da trama: o “Cânone da Criação” e o “Cânone da Vingança”, esta última justificando o subtítulo do game e trazendo um desdobramento de enredo onde Nahobino e seus companheiros precisarão confrontar um quarteto de demônios femininos chamado Qadištu, lideradas por Lilith e destacando-se por apresentar uma personagem nova chamada Yoko Hiromine, uma jovem estudante oriunda de uma instituição que forma exorcistas e um melhor desenvolvimento de outra personagem feminina, Tao Isonokami, que dessa vez tem uma participação maior na estória do que na primeira campanha. Vale lembrar que a escolha por qual das rotas o jogador irá prosseguir pode ser feita antes mesmo dos minutos iniciais de campanha.
BRINCANDO COM AS FORÇAS OCULTAS
Apesar de ser considerado um JRPG, Megaten V é um jogo que aproveita bem as potencialidades tecnológicas das gerações mais atuais de consoles para inclusive flertar com algumas mecânicas de outros gêneros ao longo da experiência de jogabilidade que apresenta.
Há momentos, por exemplo, onde quase parece que o jogador está diante de um game no estilo plataforma, ao se ter que executar saltos com o personagem que está sendo controlado a fim de alcançar baús e colecionáveis ou buscar pequenas passagens secretas para conduzi-lo a locais no mapa aparentemente inalcançáveis.
Durante os combates, que funcionam em turnos, é possível reunir uma energia vermelha chamada “Magatsuhi” para encher uma barra no campo superior direito a fim de se explorar buffs que fortalecem o impacto dos golpes dados pelo seu time contra adversários ou outras vantagens a critério do jogador que sejam modificadas nos menus em off do contexto de batalha.
Ao terem suas fraquezas acertadas em meio à execução de magias ou golpes, é concedido ao jogador e seu grupo turnos extras que proporcionam a vantagem de atacar mais de uma vez os inimigos durante os confrontos, algo que também pode ser explorado inclusive por eles se o próprio jogador descuidar-se enquanto se aventura por cenários ou enfrenta chefes. Para aqueles que um dia já jogaram outras versões do jogo ou mesmo Persona, pode não ser exatamente uma novidade, mas com certeza vale como um ponto atrativo a mostrar como o game é generoso com aqueles que estão tendo sua primeira experiência com a série e pegam a manha de como lidar com os rivais que aparecem pelo caminho, que inclusive são bastante diversos, diga-se de passagem.
Para montar sua equipe, o jogo te dá a opção de “capturar” os demônios que enfrenta através de negociações possíveis pela opção “conv. (conversar)” no menu de ações de combate. Diferente de Pokémon, aqui o inimigo não precisa necessariamente estar enfraquecido para ceder ao seu interesse em recrutá-lo para o seu grupo, basta escolher as respostas ideais em pequenos diálogos, suborná-los com itens ou mesmo dinheiro e havendo espaço a ser ocupado, a criatura junta-se a você.
Caso não consiga atrair os demônios com o poder de sua “oratória”, há a opção de obter criaturas já vistas ou registradas através de fusão dos seres que já estão sob seu controle ao se alcançar determinados locais espalhados pelo mapa. Nesta versão, um dos destaques também é a possibilidade de poder conduzir em batalha as ações de personagens humanos que juntem-se à você em seu percurso, algo que não ocorria em jogos anteriores da série.
Outro destaque bastante positivo da nova versão da quinta aventura da franquia da Atlus é a tradução em português do Brasil, ainda que por vezes o uso de certos jargões e memes deixem alguns diálogos um tanto quanto…constrangedores, ou até engraçados, se você decidir não levar a experiência muito a sério, algo que você mesmo(a) pode conferir a seguir.
Gráficos embora estejam no padrão cumprem de forma competente sua função, embora os personagens por vezes pareçam inexpressivos em meio a acontecimentos com ares de terror cósmico e diálogos soturnos, mas entre aspectos mais secundários o show mesmo fica para a trilha sonora, que proporciona bastante imersão a depender do contexto em que o jogador encontra-se.
POKÉMONS INFERNAIS
Ao pesquisar sobre Shin Megami Tensei no Google, um fator bastante peculiar me chamou a atenção logo de cara ao compreender melhor do que os jogos dessa série se tratavam: a fama do jogo entre o público brasileiro, que lhe rendeu o “carinhoso” apelido de “Pokémon de capeta”. Mas qual seria o motivo para tal percepção?
O que contribui para tal imagem são vários fatores, que podem ser observados desde sua concepção em 1987 até sua evolução com o passar das gerações de videogames. Inicialmente, MegaTen surgiu como uma adaptação para o formato de jogo eletrônico de um romance japonês chamado Digital Devil Story escrito por Aya Nishitani, que apresentava ao público em seu enredo o jovem estudante de ensino médio Akemi Nakajima, um inteligente rapaz que era nada mais nada menos que a reencarnação do deus primordial da mitologia japonesa Izanagi, e que para vingar-se de pessoas por quem nutria desafetos desenvolve um programa de computador capaz de invocar demônios (!).
Porém, aos poucos a situação foge do controle quando o próprio Lúcifer consegue chegar ao mundo real através do programa liderando uma legião de demônios para dominar a Terra, fazendo inclusive o deus nórdico Loki e a divindade maligna egípcia Set seus generais (!!) cabendo agora ao rapaz e sua namorada, Yumiko Shirasagi, que por um acaso é a deusa primordial Izanami reencarnada, partir em uma missão junto ao mesmo sujeito que criou o problema para salvar um mundo tomado por toda sorte de seres demoníacos fazendo uso de poderes emprestados por alguns deles durante o processo.
Embora use elementos religiosos para a construção de suas tramas, que costumam trazer atmosferas sombrias e/ou apocalípticas explorando temas adultos e ficção científica, Shin Megami Tensei ao longo de suas 15 produções sempre trouxe uma verdadeira “salada cultural” para a construção de suas tramas, fazendo uso de criaturas místicas que fazem parte de folclores e religiões de diversas partes do mundo para compor a sua galeria de inimigos e aliados.
Curiosamente, apesar da associação com Pokémon, que é um nome mais conhecido pelos brasileiros, Shin Megami Tensei na verdade trouxe desde seus primeiros jogos conceitos e mecânicas que inspiraram não só a franquia de monstrinhos da Nintendo no ano de 1996, como posteriormente também outras de criaturas colecionáveis como Digimon e Yo-kai Watch, o que faz com que a ideia de que se proponha em ser um “Pokémon demoníaco” seja um tanto quanto equivocada, visto que na verdade o que poderia se dizer era que todos os citados parecem na verdade variações de Shin Megami Tensei para um público infantil e juvenil ou simplesmente pouco simpático à ideia de manusear seres demoníacos para seus objetivos, ainda mais em regiões onde o cristianismo é a fé dominante.
VEREDITO
Se essa review/análise demorou a sair em comparação com o período de lançamento, pode ser talvez pela imersão que Shin Megami Tensei V conseguiu me proporcionar com sua proposta, trama e jogabilidade que rendem em média entre 80 a 100 horas de jogo, mesmo em meio a uma vida corrida e cheia de responsabilidades.
Contudo, o que basicamente posso dizer é: se você é fã de JRPGS, tem interesse pela franquia Shin Megami Tensei, e gosta ou ao menos já jogou Persona, Shin Megami Tensei V: Vengeance é talvez um dos melhores games no estilo lançado em 2024, quiçá da franquia como um todo.
Mas fica a dica, tente jogar longe da vista daqueles seus familiares ou parentes fervorosamente cristãos, caso você tenha. Explicar por que você parece se divertir controlando criaturas de aparência demoníaca com diálogos em português que deixam isso bem claro pode lhe poupar de eventuais aborrecimentos.
Shin Megami Tensei V: Vengeance está disponível para PlayStation 5 e 4, Xbox One, Xbox Series S/X, Nintendo Switch e PC.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não remete necessariamente a posição do ANMTV*
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